O Expectador.

Devia ser umas onze horas e Alex desperta. Lá fora chove a cântaros. Ele se levanta e vai cambaleando até o banheiro; mas volta sem ânimo para a sala onde liga a televisão e tenta se animar com aqueles programas medíocres, cheios de comerciais cansativos. Meio zonzo ajeita-se nas almofadas. Da cozinha, uma voz sonora lhe rompe os tímpanos:

-Já arrumou a cama?...separou as roupas sujas? Não se esqueça do trabalho de Ciências e nem de devolver o CD dos Paralamas! A irmã do Guto ligou ainda há pouco cobrando... e amanhã tem dentista!

Inerte no sofá, Alex estava envolto naquele marasmo, mas, de repente, “pintou" uma vontade de sair, ir para algum lugar onde pudesse ver gente nova, coisas ainda não vistas... Mas como? Com toda aquela chuva?

Sai dali entediado e vai para o quarto onde tudo era monótono. As coisas jogadas pelos cantos. Na parede, quadro do Metálica, Madona, Legião Urbana, Iron Maiden, Lady Gaga, Black Eyed Peas, Caetano Veloso nos tempos da Tropicália, tudo empoeirado; a Rihana estava desbotada e o que era vistoso perdeu a graça. Remexendo os guardados, encontrou um álbum antigo. Fazia tempo que ele não o havia folheado. Logo na capa, havia uma dedicatória com sua caligrafia toda torta, quase ilegível. Iniciou-se naquele momento uma viagem no tempo.

Primeira foto: dia do seu batizado. Tinha um olhar assustado como se estivesse perguntando: O que é isto? Todos o admiravam: o padrinho, que falava alto, a madrinha carinhosa, a mãe que o acompanhava todos os dias; o pai, orgulhoso e mais jovem, irmãos e amigos felizes com a sua chegada. Noutra foto, já um pouco maior, arriscava alguns passos e caía constantemente. Alguém sempre o amparava. Nova página: primeiro ano de escola. Novas amizades e inimizades. As pessoas que o cercavam viviam momentos tensos, estampando no rosto falsa simpatia. Na sala, era uma mistura de discórdia e curiosidade; o que mais lhe interessava ali não aprendia. Tinha de ler, escrever, fazer contas e ninguém fazia conta das suas inquietações (para ser sincero, nem ele sabia). A mente fluía rápida, mas o seu universo não ia além da sua rua, pois tudo estava ali: seus pertences, seus amigos e isso, era tudo! Nova fotografia: atualidade. Mentiram quando falaram em Cegonha, Bicho Papão; as Bruxinhas nunca existiram, nem os Duendes. Papai Noel também era uma farsa e a escola não se resumia à sala de aula. Era seu aprendizado o encontro entre diversas crianças das mais variadas classes, as lutas, o corre-corre, a ida e a volta, as gozações, as sacanagens, as “colas” e as difamações, mostrando que o melhor e o pior da vida não se aprendem só na escola, mas, também, a caminho dela. O primeiro beijo foi um espasmo; o toque, o calor, a textura dos lábios úmidos, o perfume, a presença... a primeira vez...(ninguém precisa saber que ele é virgem) vai dizer para todos que foi demais...

Acabaram as fotos, porém, há muitos espaços vazios no álbum. Pode encaixar ali uma pose onde Alex esteja dentro de um terno jurando à Bandeira, ou dentro de um uniforme, indo “servir o Exército”. Vai ter de cortar o cabelo, tirar o brinco para a alegria dos seus pais, que nunca aceitaram a idéia de um pingente prateado na orelha. Apesar de jovem, há sombra de pelos no rosto; outros despontam pelo corpo. Logo, vai ter de fazer a barba, seus colegas já têm namoradas; as meninas de sua classe já se depilam, usam batons discretos, decotes insinuantes e bermudas de “cotton”, salientando a “bundinha” empinada e o umbigo exposto. Cai o álbum: uma foto se expõe e, nela, Alex, ainda criança, se vê cercado por pessoas conhecidas, da época em que se alguém dizia: “Mostra para nós que você é homenzinho!”... Era só baixar a fralda e mostrar o “pintinho encolhido” que todos aplaudiam. Hoje, se abre a boca para falar de suas idéias, os Crentes se calam, os pais enlouquecem. Se por qualquer motivo se demora no banheiro, quase arrombam a porta. Tudo o que sabe sobre sexo está relacionado às fantasias concebidas nos momentos de solidão em que manipula o próprio corpo, e os educadores se preocupam em falar de sífilis, gonorréia, dengue, H1N1. Tem de usar camisinha!...que a hepatite B se transmite via sexo, e pode matar; a Aids “detona”.São tantas barreiras para deter um tesão que transborda.

Alex sonha com algo diferente, coisas vibrantes, carro do ano, viajar, “curtir”, mas a realidade se resume em conta de água, luz, telefone, farmácia, supermercado, o circular que sempre atrasa e a felicidade dos fins de semana prolongados, em que “as gatinhas mais transadas” estão sempre mal acompanhadas. As pessoas se acotovelam em cima de qualquer novidade. Tudo é instável, há tantas coisas novas acontecendo! O que será que vai “rolar” de novo... Amanhã? Nos próximos dias?...

Os desiludidos “fazem a cabeça”, mas são os “caretas” que dão as cartas, todas marcadas. Por ocuparem os melhores cargos, trucam em falso e fazendo os “Zapes secos” dos “manos” irem para o espaço. No meio de tantas indagações, pega sua jaqueta antiga, seu tênis “surrado”, ajeita os cabelos, ensaia um sorriso e fecha o álbum. É o fim da viagem.

Lá fora a chuva continua a cair. Um cheiro agradável vem da cozinha. Há sinal de sono... Não importa o que o destino lhe reserve, ele vai estar à espera.

Num programa de flash back da rádio local, toca Civil War do “Guns”. Alex olha pela janela; a rua está deserta, mas a noite logo chega e a “galera” estará solta e confiantes nas suas verdades vão seguir juntos, pelos caminhos das incertezas.