A PAIXÃO DO CRISTO

- Morreu há muito tempo! Concluiu a jovem prostituta diante da inquirição assombrada da novata que a indagava com sofreguidão.

- Não acredito! E em que repousa a esperança do povo?

- Que esperança que nada! Você ainda tem estes sentimentos? Retrucou a mais experiente, levantando a saia para um possível cliente que passava despindo-a com o olhar.

Janete estava há um mês na rua e ainda não tinha se acostumado aos ditames da vida. Mal completara quatorze anos e fora obrigada a encarar a prostituição, a despeito das campanhas do governo. Tinha sido expulsa de casa pelo padrasto, estava morando com uma colega num pé-de-porco na Lapa e quem bancaria a sua roupa, sua comida, seus mimos?

Não teve dúvidas. Assumiu a mais antiga das profissões e não havia quem a demovesse dessa sua vontade de gerir a própria vida sem dar satisfação a quem quer que fosse.

Um rapaz a convidou acenando com duas notas de dez dólares e ela diligentemente embrenhou-se porta à dentro do velho Alfa - Romeo, como se estivesse entrando numa limusine em Nova Iorque.

Um pouco mais e deixava as bandas da Praça da Bandeira onde fazia ponto sob as bênçãos do Cristo Redentor – motivo de suas indagações -, e encaminhava-se célere para o Túnel Rebouças com destino ignorado.

Dentro do carro, pensava na imagem marcante do Cristo de pedra que sempre vira pela televisão e que agora presenciava de perto, qual cenário anticlímax de sua vida incerta. O rapaz deslizava a mão sobre suas hirtas coxas adolescentes e ela, despertando-se de seus devaneios metafísicos, volta-se para sua vocação primária. Abre as pernas e deixa-se tocar na intimidade por aquele jovem louro, classe média, que a deseja intensamente.

Nascida na Baixada Fluminense, desde cedo se acostumara à paisagem urbana de um Rio de Janeiro atropelado pela ocupação desordenada do solo, num amontoado de gentes e coisas que lhe chamara a atenção desde o primeiro dia em que fez o percurso de trem Belford Roxo – Central do Brasil, quando tinha apenas seis anos.

O corre-corre frenético da cidade e o ir e vir de pessoas apressadas que mal davam conta de existir, levava Janete a encantar-se com a metrópole. Segurando firme nas enormes e calejadas mãos de sua mãe, era quase que arrastada por ela para não se perder no meio da multidão nem ser sufocada pela turba que marchava célere para o trabalho naquelas manhãs e fins de tarde de 1995. Sua mãe encarava o rush diariamente, por conta do trabalho de merendeira na Escola Municipal situada na Avenida Presidente Vargas. A tarefa a consumia por completo.

Pequenina, diminuta, Janete encantava-se em olhar para cima e perceber-se no meio de arranha-céus gigantescos que engoliam a paisagem natural da cidade e a tornavam um amontoado de concreto urbano, numa intervenção nem sempre benéfica do homem sobre a natureza. Passara a acompanhar a mãe ao trabalho desde que seu padrasto, naqueles agourentos dias de 1995, intentara fazer-lhe uns carinhos mais íntimos. Assustada, contou o fato à mãe que pusera fim à farra, trazendo-a sempre consigo.

Mas foi ali no Colégio, à porta daquele Educandário, que junto com outros meninos e meninas de sua idade aprendeu o que é viver no Rio de Janeiro de fim de século XX. Descobriu com a molecada o gosto pela “cola de sapateiro”; o prazer da alta tensão provocada por pequenos furtos praticados contra pedestres mais desavisados; a alegria pueril e descontraída da vida em bando numa pequena horda de bárbaros urbanos. Aos trancos e barrancos conseguiu completar o primário, mas o que mais ficara impresso em seu caráter fora o aprendizado da rua, do pátio, de fora das quatro paredes daquela sala de aula indefectivelmente amorfa que não lhe conquistara para o mundo do saber, nem lhe preparara para a vida.

O cotidiano lhe roubara a vida e lhe maculara a existência. Janete virara a costa para a civilização e embrenhara-se de corpo e alma na proposta imediata de satisfação de suas necessidades básicas que a situação lhe impunha.

Agora, dentro daquele carro, depois de tantas idas e vindas e de tanto conjugar binômios contraditórios: sonho e frustração; esperança e decepção; conforto e insegurança; Janete assumia resoluta a nova porta que se lhe abria com o mercadejar de um corpo que se apresentava atraente aos olhos de tantos que a cobiçavam. Queria mais uma vez tentar vencer na vida, mas estava algo incerta sobre se este caminho era o melhor.

Dentre tantas lembranças destes curtos e intensamente vividos anos de sua infância e pré-adolescência, recordava-se das noites mal dormidas por conta do padrasto, da fuga para a casa da tia, da ida a igreja evangélica, do casal que a “adotara” por um período de pouco mais de ano, dos pacotinhos de amendoim vendidos no suburbano estágio de vida... Eram tantas lembranças e tantas emoções! Mas o período em que esteve sujeita ao impacto da religião lhe deixara algumas marcas que a incomodavam sempre que sua mente punha-se a pensar na existência.

Agora, nua, naquele malcheiroso e decadente carro, fazia sexo automaticamente, deixando-se usar por um indivíduo que não conhecia; que poderia não remunerá-la; que poderia machucá-la; que usava seu corpo com ânsia primal e dava vazão a uma libido incontrolável, de uma forma agressiva e insaciável, sacolejando seu corpo frágil nos escombros de sua dignidade. Enquanto deixava-se usar, seu mundo e seus sonhos giravam em sua cabeça e uma ponta de dor apertou-lhe o coração e alfinetou sua alma.

Quando, por fim, o jovem esgotou seu apetite sexual e jogou-se para o lado do carro, Janete, com vagar e precisão cirúrgica, ajeita-se, esgueirando-se porta afora. Uma lufada de ar frio bate-lhe contra o corpo. A respiração fica ofegante. E os cabelos baloiçam açoitados pelo vento. A menina puxa um surrado estojo de maquiagem da bolsa e intenta refazer o semblante desfigurado pela orgia. Quando leva o pincel ao rosto, e se ajeita no pequeno espelho para contemplar-se, uma sombra tênue lhe mostra um cenário familiar. Vira-se e contempla a paisagem à sua volta. Está no mirante do Corcovado. O enorme Cristo de pedra está ali postado, com os braços abertos, estratificado, inerte, a olhar para o infinito. Absorto, indiferente, petrificado, este Cristo não lhe oferece ajuda. Apenas assiste o ruir de seus sonhos como se o desiderato de sua vida não mostrasse qualquer significação, qualquer valor.

Janete deixou-se inundar por uma saudade incontida, de tempos imemoriais, de um Rio de Janeiro épico, histórico, de epopéias grandiloqüentes registradas nas páginas da História, da Belle Époque, do romantismo da cidade maravilhosa, das charretes condutoras de sonhos, do fluir pacato e silencioso de um destino tranqüilo que trazia a vida e arrastava a civilização. Para ela, um tempo não vivido, mas um existir desejado, sonhado; sem pressas, sem correrias. Um tempo de esperanças, de sonhos. Um tempo de construção, de projeção, de expectação.

Mas agora, o que a realidade lhe mostrava era uma cidade falida, cenário de bang-bangs urbanos, de violência, de favelização crescente, de Fernandinho Beira-Mar, de drogas, de tráfico, de maltrapilhos e pedintes, de pivetes e provectos açulando os transeuntes e provocando o confronto. Uma cidade de Candelária, de Vigário Geral, de Bangu I, II, III e sabem-se lá quantos mais... Uma cidade sofrida, uma cidade partida, uma cidade que descarrilou e precisa redescobrir sua legítima vocação.

O Cristo está lá: parado, definitivamente empedernido pelos homens, de braços abertos a reclamar carinho, mas também a oferecer aconchego e proteção. Porém, ninguém quer, ninguém vê, ninguém se sensibiliza e o Cristo quer agir, quer sair de seu estado de inércia, mas precisa de quem ouça sua mensagem e resgate esta paixão maior pelo outro, pelo próximo, pela vida que sua existência na face da Terra trouxe à humanidade.

- “Morreu há muito tempo!” Ecoavam ainda na mente de Janete as palavras sobre o Cristo que sua colega de vida proferira. Mas a esperança ainda repousava em seu coração, embora sofresse críticas por abrigar sentimentos tão arcaicos.

Ela amava a cidade, amava a natureza exuberante que se descortinava à sua frente, amava viver e sonhava que poderia ser feliz se conseguisse ultrapassar os umbrais da desdita que lhe acompanhava desde a infância.

O rapaz louro assovia, chamando-a. Ele quer pagar o serviço e acena novamente com as duas notas de dez dólares:

- É sua! Vem pegar!

Janete dá as costas para aquela oferta e toma um táxi, deixando para trás a imagem do Cristo Redentor, que vê diminuir e desaparecer pelo espelho lateral. Ao fundo a Baía de Guanabara começa a dormir mergulhada nas trevas de uma chuva que se avizinha. Os olhos da menina brilhavam quando entrou no táxi, e seu rosto sorria e seu coração acalmava-se enquanto também adormecia no banco traseiro de um novo destino.

(25 de março de 2003.)

ALEX GUIMA
Enviado por ALEX GUIMA em 29/08/2006
Reeditado em 29/01/2024
Código do texto: T227826
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