Cotidiano

Lúcia já se separou 3 vezes, mas gostava muito de Antenor, por isso sempre voltavam. Antenor era até um cara bacana, vivia conversando com os vizinhos e adorava fazer panquecas, era completamente apaixonado por Lúcia e ela bem o sabia. Eles formavam um belo casal, e naqueles 16 anos de casados já olhavam um para o outro e se cansavam - mas no fundo, se amavam.

Viviam em uma casa simples, no bairro mais básico da cidade. Lúcia não tinha luxo, era a típica mulher que limpa a casa para o marido, lava para o marido, cozinha para o marido e se arruma para dormir. Ele a aceitava assim e até gostava.

Em todos os finais de semana eles se divertiam muito, ligavam a TV e assistiam câmera escondida, pegadinhas e trapalhadas. Antenor esticava o braço e puxava Lúcia para o seu colo e ela sorria pelo canto da boca, enquanto dizia:

- Tenho que ver o arroz. Deixe disso homem.

E então, ele a largava e a via de costas caminhando lentamente até a cozinha.

Moravam sozinhos, já que não tinham nenhum filho. Adotaram um cachorro chamado Fox, mas Fox fugiu certo dia, quando Antenor deixou o portão aberto enquanto ia buscar pão.

Fox nunca mais voltou. Desde então, decidiram não ter mais nenhum animal.

Antenor trabalhava em uma Usina, acordava sempre as 5 horas da manhã com os cutucões de Lúcia, pegava a calça e a camisa sempre já passados e colocados delicadamente sobre a cômoda do quarto, escovava os dentes e olhava a aparência velha que adquiria com os dias, pegava a marmita em cima da mesa e dizia:

- To indo viu. Não esquece de trancar o portão.

Lúcia bocejava, virava de lado, ouvia a porta fechar e depois levantava para fechar o portão.

Lúcia não trabalhava fora, só ficava em casa fazendo o que tinha de fazer, não era muito comunicativa, mas de vez em quando recebia uma visita ou outra, vizinhas fofoqueiras que lhe contavam as novidades de todo o bairro. E ela dizia:

- Jura menina? Eu não tava sabendo.

E então, em um dia desses, Lúcia estava triste.

Antenor chegou do trabalho, como de costume, sempre as 4:45 da tarde, deixou os sapatos na entrada, colocou a marmita na mesa e entrou no banho.

Lúcia olhou todas as coisas que lhe faziam viver, toda a ordem que devia colocar nos móveis e utensílios, sentiu falta de si mesma e não pensou em mais nada.

- Antenor...

- Antenoor....

E pela terceira e ultima vez ela chamou:

- AntenOR!

Fechou os olhos enquanto ouvia o som do chuveiro, fechou os punhos com força quase que irreconhecível e virou sobre a mesa derrubando a marmita, o vaso e a chave do carro. Pegou com raiva a cadeira e jogou sobre o microondas e geladeira. Quebrava tudo com o desejo de libertação, grunhia com raiva e dor, que se ouvia vir do peito.

- QUE É ISSO MULHER? VOCÊ TA MALUCA LÚCIA? - Antenor, de toalha, tentava segurá-la.

Ela parou, virou e o encarou nos olhos.

-Me cansei de tudo isso. Me cansei de você!

Ele não entendeu as palavras, desconversou e soltou-a vendo-a caminhar para o quarto.

Ficou sentado no degrau da entrada, enquanto Lúcia estava trancada, provavelmente chorando na cama.

Mas ele não sabia de nada.

Eles se amavam.

Lúcia amava-o com todas as forças do peito.

Antenor a amava com todas as forças do corpo.

Mas a rotina é uma coisa que dói.

Dói, dói e destrói tudo em volta.

Talvez seja pior que o ciúme, pior que as intrigas, pior que traição.

A rotina é como uma leve corrosão, que com o tempo retira todas a chances de alguma coisa permanecer em vida. Ele se levantou, abriu a porta e olhou Lúcia sentada no canto da cama, observando algumas fotos antigas.

- Lú...

Ela o olhou com aquelas lágrimas tristes nos olhos, pensando se haveria a 4ª separação, se aquela seria definitiva, se havia uma salvação para aquele dolorido amor.

Ficaram ali se olhando, decidindo-se no silêncio, talvez imaginando como seria tudo dali para a frente e relembrando de tudo, de como tudo era no passado.

No ar permaneceu a pergunta se o amor ainda aguentava ou se estava tudo realmente acabado.

Quem responderia a questão?

Somente o coração dos dois amados.