18 anos de Adolescência

Ela acordou triste naquele dia. No espelho do banheiro, seus olhos fugiam de si mesmos. Talvez já soubessem o que iria acontecer mais pra frente. Talvez já previssem o futuro próximo. Teve medo de se encarar. A água fria no rosto afastou pensamentos estranhos que já brotavam em sua cabeça. Uma música agradável tocando no rádio ajudou no efeito especial que encobriria por muito pouco tempo a realidade começar a devorar seu dia. Ela estranhou, pois não era uma música que assumidamente gostasse, muito pelo contrário. Não tinha nada a ver com seu gosto musical tão autoproclamado sofisticado. Estranhou também, a cor de seu cabelo. Como, se até ontem ele fazia todo o sentido? Mas agora, aquela mecha azul estava fazendo o que ali? Não conseguia pensar em explicação alguma para uma mecha azul. E as unhas pretas, por que razão escolhera aquela cor? Correu para se arrumar, mas a sensação persistiu.

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Agora eram as roupas, que até ontem lhe pareceram tão normais, tão suas. Seus All-Stars pretos, suas meias com estampas... Suas... – de repente uma pontada de pânico. Por alguma razão, sentiu uma vontade súbita de olhar para suas tatuagens. E quanto mais evitava olhar, mais o pânico aumentava. Sabia que se olhasse, iria de repente questionar cada uma delas. Temia profundamente ser assaltada por uma vontade irracional de arrancá-las da pele. O pânico aumentava, todos os seus sentimentos estavam descontrolados. Era impressão sua, ou do nada, passou a não ver sentido em si? Uma onda de entendimento invadiu seu cérebro. Como um vento forte varrendo a poeira suja numa rua deserta perto do cais do porto. Sujeira, jornais, referências, aparências, tudo foi sendo embolado, levado, mexido. Não entendia como, não percebia porquê... Até ontem era tão dona de si, tão consciente de tudo que fazia, sentia e pensava. Até ontem. Hoje, tinha acordado diferente.

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Tentou pensar em outras pessoas, tentou pensar no namorado, nos amigos, nos colegas do trabalho. Mais uma vez pânico. Percebeu que fazia parte de uma tribo. Na verdade, percebeu que eles eram tão iguais a ela, tão semelhantes, tão identificados, tão vaziamente atirados às mesmas vertentes e idéias, que começou a sentir enjôo. Com lágrimas nos olhos, pensou no namorado, e a idéia que veio à sua mente foi a de serem metades de um sanduíche de pão de forma, duas fatias apenas, sem recheio algum, esfregando-se uma na outra. Até em seu momento alucinado, percebeu que na imagem que se formava, não eram um sanduíche de nada com nada, mas que havia entre as fatias de pão um composto de poeira, cabelo, sujeira do chão...

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Correu para o vaso... Vomitou. Dobrou-se sobre si mesma, até que tudo que conseguira fazer sair era uma bílis amarelo-verde, que de tão concentrada, ao bater na água dissolveu e espalhou como tinta. Levantou-se com dificuldade, apressou-se em deitar na cama novamente. E começou a achar seu quarto ridículo. As cores, as escolhas, a estética. Começou a contar mentalmente suas tatuagens... e a compará-las de forma estudadamente cruel com as dos seus amigos. Entre lágrimas, percebeu que tirando algumas pequenas diferenças, conceitualmente que fosse, pelo menos uma pessoa que conhecia tinha uma tatuagem igual ou bastante parecida com uma das suas. A mesma coisa com as roupas, a mesma coisa com os lugares freqüentados, a mesma coisa com as bandas favoritas. Tentou alcançar um cigarro na mesa de cabeceira. Pânico novamente. Sentiu-se tão idiota por querer fumar, por praticar um ato que ali, naquele momento lhe parecia tão idiota. Agitou-se ao pensar como até ontem fumar era revestido dos mais diversos significados. Não sabia se jogava pela janela o maço que tinha acabado de amassar, ou a si própria, já que se sentia tão amassada quanto. Sentiu nojo dos cigarros. Não teve vontade de vomitar novamente, mas o gosto ruim da bílis voltou com força à sua boca. Não se via naquele momento, mas provavelmente estaria fazendo uma cara horrível.

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Afundou no travesseiro, sentindo que sua única escolha naquele momento era dali a algum tempo ter que redefinir quem era de verdade ou tentar dormir até acordar de novo e tudo ter voltado ao normal. Sentiu medo de acreditar mentirosamente na segunda opção, porque sabia do fundo do coração que ela era uma possibilidade tão morta quanto a sua ilusão naquele dia. Descobriu que passou anos sentindo que era bonito fazer o papel de deprimida-chic. Que toda a construção dos seus valores tinha vindo de uma idéia pré-concebida que tinha comprado de alguém em algum momento de sua adolescência. Não era gostoso pensar que passou mais da metade de sua vida sendo uma estação repetidora de coisas que nem eram suas. E naquele momento libertador, naquela hora mágica, pela primeira vez em sua vida, teve a noção exata da sua desimportância, conseguiu se ver não como a pessoa “diferente” que tanto orgulho tinha de se rotular, mas como um clone de vários outros do que poderia chamar de “seu grupo”. E ali, sentada na cama, sentindo-se apenas mais uma vaca tatuada e com piercings pelo rosto afora, soube o que era estar deprimida de verdade. E não gostar da sensação. Assim, na aurora dos seus trinta anos foi parida pela vida, pra ver a luz desse mundo que com sua adolescência estendida, tinha ajudado a tornar tão sem sentido.