Lágrimas em silêncio

Dona Anita, uma senhora com 75 anos de idade, depois do almoço, sempre caminhava ao redor de sua varanda para fazer a sesta. Seus passos firmes e lentos faziam que exercitasse seu corpo físico, mas, ao mesmo tempo, o seu semblante ficava terno, meigo, suave e com um jeito de dever cumprido.

Assim, o seu espírito também estava a ser tratado. Fazia uma meditação e mergulhava no seu interior, no seu íntimo, a tentar, possivelmente, colocar sua energia em ordem.
Punha as mãos para trás, olhava a relva, ouvia o cantarolar dos pássaros, sentia o ar fresco que vinha do campo e um tímido sorriso saia dos seus lábios. Nada de conversa. Aquela era uma hora sagrada em que apenas os ruídos da natureza se comunicavam com ela.

Num dia de chuva, porém, Dona Anita agasalhou-se e após o almoço não interrompeu seu ritual, ou seja, foi fazer a sua sesta caminhando vagarosamente pela varanda. Um carro parou em frente ao seu portão e fez com que ela esperasse para ver quem estava a chegar. Um homem com farda de chofer aproximou-se do portão da casa da D. Anita e vendo-a perguntou:

- Boa tarde, minha senhora.
- Boa tarde, senhor. O que deseja?
- A senhora conhece Dona Anita dos Anjos? - Sim, sou eu, meu senhor.
- Posso entrar?
- Sim, aproxime-se, por favor. Esteja a vontade.

Dona Anita, disse o Chofer, trouxe-lhe uma carta, mas necessito que a senhora leia, pois tenho que levar a resposta ao remetente.
Sim senhor, disse D. Anita, mostrando ao chofer um banco ao abrigo da chuva para que sentasse e aguardasse. Ao mesmo tempo, ofereceu-lhe água e café e pôs-se a ler a carta.

Albuquerque, 05 de Maio de 1969.

Minha querida mãe,

Espero que esta a encontre em paz e com boa saúde. Me desculpe a ausência prolongada. Estou no interior a trabalhar num posto de saúde onde atendo muitas pessoas diariamente.

Desde o nascimento do Pedrinho não nos encontramos, não é, Mãe? Ele já está com sete anos e é muito peralta. Talvez seja peralta como eu fui. Pelo menos a senhora sempre me descreveu assim.

A sua nora, a Letícia, está bem e esperando nosso segundo filho. Já está com seis meses de gravidez e estamos muito contentes.

Sinto muito, mamãe, que meu trabalho e a distância, não me permitam estar mais próximo da senhora. Infelizmente, são «Ossos do Ofício». Entretanto, querida mãe, jamais esqueço do sacrifício e do amor que a senhora sempre dedicou a mim e aos meus irmãos.

Criaste cinco filhos sozinha, já que nosso pai a abandonou quando eu, o menor, ainda estava a ser amamentado. Me orgulho de sua galhardia e de sua altivez. Sempre segura, sempre guerreira... uma grande mulher!

Nunca a vi reclamar da vida. Ao contrário, recordo-me de vê-la com seu terço nas mãos e, sinto, estavas a orar e agradecer, pois sempre nos ensinaste que a gratidão é um dever. Tenho certeza, mamãe, que a senhora estava sempre a agradecer a Deus pela vida e pelos seus filhos.

Eu, minha querida mãe, não tenho a mesma fé que vós. Sou mais materialista, mais prático, mais objectivo. Deve existir algo acima de nós. Acho que sim, mas não me prendo a essas coisas. Prefiro estudar e ser um homem de carácter como a senhora me ensinou. Sendo médico aprendi a defender a vida e a respeitar o meu próximo. Esse é o meu trabalho... minha vida.

Numa dessas tardes, um homem com seus 80 anos foi trazido ao Posto médico. Ele estava com diversos problemas respiratórios, pressão arterial muito alta, fraco, enfim, seu coração estava combalido. De qualquer forma, junto com a equipa, conseguimos reanimá-lo, mas o quadro era muito crítico e ele veio a falecer horas depois.

O nome dele era Armando Felício dos Anjos. Mãe, confesso que pasmei ao assinar o atestado de óbito, porque constatei que o nome de seus pais era o mesmo dos meus avós paternos. Ele era o meu pai, mãe! Mãe, ele era o meu pai!

Fiquei desorientado e mandei chamar quem o havia trazido ao posto médico. Apresentou-se uma mulher chamada Maria de Fátima. Ela me disse ser a esposa do meu pai.
Num impulso, lhe perguntei: - Como a senhora é a esposa deste homem se ele era casado com outra?

A mulher muito nervosa respondeu: - Quem o senhor pensa que é, Doutor? Me casei com ele na Capela aqui do bairro há 35 anos. Temos 3 filhos e sou a esposa dele sim. Sou uma mulher honrada e exijo que me respeite...

Dona Anita parou de ler a carta, retirou do bolso da saia um lenço e, escondida, enxugou as lágrimas que lhe molhavam à face. Respirou fundo e, de olhar fixo no horizonte, lembrou do dia em que Armando, sem dizer adeus, a deixou com seus cinco filhos pequenos.

Dias se passaram e ele não mandou nenhuma notícia. A única coisa que fez, três meses depois, foi lhe escrever uma carta e, juntamente com esta, mandar-lhe a escritura da casa e do terreno que moravam, dizendo-lhe que tudo estava em seu nome e, portanto, ela teria como sobreviver da terra.

Disse-lhe que os empregados que lá estavam poderiam ajudá-la, já que também tinham moradia garantida. Sem explicação, nada mais disse ele, nada mais...

Anos mais tarde, lembra Dona Anita, depois de muito sofrer, soube que Armando se casara com uma jovem 20 anos mais nova que ele. Armando era bígamo e Dona Anita nunca reclamou seus direitos perante à Justiça, tampouco delatou seu marido, ainda que ele a tenha feito comer «o pão que o diabo amassou». Preferiu o silêncio, uma vez que este foi o seu companheiro durante décadas.

Parou de relembrar o passado e voltou à carta. Seu filho continuava:

.... Mamãe, fiquei muito nervoso e mandei que aquela mulher se retirasse. Ela estava a chorar e eu fiquei chocado e penalizado ao mesmo tempo. Fui até à porta e vi que um rapaz a abraçava carinhosamente e dizia: Se acalme, mãe, se acalme!

Eu chamei o rapaz e contei a ele a nossa história... A sua e a minha história...O rapaz comoveu-se, disse que o Sr. Armando sempre foi um bom pai, que amava sua mãe, mas ele sempre percebeu que algum segredo rondava sua vida. Um segredo que acabara de ser desvendado...

Minha mãe, por favor me responda: - A senhora avisará aos meus irmãos e virá para o enterro?
- A senhora enviará alguma mensagem, carta ou coisa parecida? O que fará?

Dona Anita, calmamente, pediu que o chofer aguardasse mais um pouco, entrou em casa, sentou-se e numa escrivaninha que havia em seu quarto escreveu a seguinte resposta ao seu amado filho:

Meu adorado filho Rui,

Como o destino é sábio e como Deus escreve correctamente. Nunca poderia imaginar que no final de minha vida o seu pai pudesse aparecer dessa forma. Menos ainda que ele viesse a morrer em suas mãos.

Avisarei aos seus irmãos e a cargo deles ficará a decisão se irão ao enterro ou não. Quanto a mim, não tenho nada a dizer. Esse enterro já havia acontecido em minha vida. A única coisa que desejo registar é que a «palavra é prata, mas o silêncio é ouro».

O Silêncio nunca nos trai, meu filho, pois nos obriga a calar.

Com amor e muitas saudades,

Sua mãe
Anita dos Anjos.