Exu Caveira

Exu Caveira

Uma barata passa torta pelos pés do menino. Paira sobre a unha suja e sem corte, descansa um pouco e segue seu caminho pelas ruas sujas e bolorentas. O pé foi apenas um pequeno obstáculo na vida dela. Para o menino a barata não foi nada, nem existiu. Ele apenas continua cheirando cola sem perceber a presença escrota. Enche e esvazia o plástico viscoso. A cola lambendo seus órgãos, tornando insolúveis os sonhos de criança. Ele veste uma camiseta surrada que vai até aos joelhos, tem listras de cor ocre e está cheia de manchas. A gola funda sugere um pedaço do ombro. Do lado esquerdo um furo, como se o menino tivesse sido atingido por uma bala no peito. Direto no coração.

Ele se chama Jason, pelo menos acha que se chama assim e gosta do furo na camiseta. Gaba-se para o amigo que foi tiro que provocou aquele furo. Mostra uma cicatriz que tem ali no peito com orgulho.

O amigo é o Jambo e tem orelhas de abano. Talvez por isso goste de escutar tanto as histórias de Jason. O seu Cleber, dono da banquinha, disse pra eles que quem tem orelha grande se chama Dumbo e não Jambo, mas ele continuou se chamando Jambo porque Jason acha que combina mais. E dos dois o Jason manda. Talvez por ser mais velho, mas eles também não sabem a idade que tem. São das ruas, sempre foram e nas ruas não existem aniversários.

Jason deita de costas sobre a calçada fria, o movimento provoca um baque duro e seco. Ele sente a pressão nas omoplatas. Jambo imita o gesto enquanto a cola enche de névoa seus devaneios infantis. O céu está cinza, aliás, faz tempo que o céu está assim. Jason não lembra a última vez que viu ele azul. No ar o aroma fumacento das grandes cidades. Jambo puxa uma conversa com o amigo.

-Você sabia que o fim do mundo tá perto? Foi o Turco lá da praça que falou, diz que tá pra acontecer aquela porra do apoli... apoca... aquela porra lá da bíblia saca?

Jason solta um risinho e diz:

- É apocalipse que fala seu burro! E tu acredita nisso, que vai tudo acaba?

-Sei lá, vai saber né?

Jason levanta:

-Eu tô poco me lixando pra porra que vai acontecer. Por mim pode acabar num barranco, tô nem aí. Tu bem sabe que eu não morro, já levei tiro até.

Jambo quer ouvir uma das histórias megalomaníacas de Jason e incentiva o amigo a contar:

-Que cê ía faze se fosse o fim dessa porra toda? Se fosse o último dia da terra, heim?

Jason senta, olha pro canteiro do outro lado da rua. Tem uma flor bonita crescendo lá, mas ele não sabe o nome. É um alívio de cor naquele amontoado de cinzas, pretos e marrons. Fica pensando. Depois imita uma arma e faz uma pontaria imaginária.

-Eu assaltaria a porra do Mac Donaus e comia tudo que tem lá dentro. Depois seria preso, mas foda-se. Barriga cheia e cama. Iria ficar olhando da janelinha o mundo acabando, dando rizada dos bobo morrendo. Os cara cheio da nota morrendo. Não ía adiantar nada ser rico, não ía adiantar porra nenhuma, ía ser massa, saca? Por que eu não morro, tá ligado? Sou imortal... cê sabe disso. Já levei tiro, surra, caí, fui atropelado, faca, choque de pipa, barranco... tu sabe né véio? Aquele mano do morro que tento me estrangula, lembra? Já te contei das veiz que era preu morre e olha só. Vivinho. Interaço!

Jambo continuava mergulhado no cinza do céu. As nuvens provocando suave balanço em suas retinas. Fala com voz sonhadora:

-Sabe, fica preso não deve ser ruim não.

Jason dá um soco no braço de Jambo e esbraveja:

-Tá maluco véio, tá louco é? A cola colou teus miolos? Fica preso é uma bosta cara, liberdade é a única coisa que a gente tem. A única. Não fala mais uma bobage dessa. Preso só se for no fim do mundo...

Jambo senta levando a mão onde o soco acertou.

-Ai seu fila da puta. Essa doeu véi!

Jason aponta o dedo em riste. Adora falar daquele jeito, intimidando. Se ele estudasse seria o valentão da escola:

-Isso é pra aprende a não fala essas besteras de merda de ser preso aí! Nós somos safo véio! Nós pula, dibla, avança e gol! Nós não é pego pela polícia. Nunca, entendeu?

-Mas cê disse que ía assalta o Mac Donaus e depois ir preso... e ía ficar olhando e...

- Eu não ía ser preso não... ía fugi nessas motos harlei daivison, saca? Fugir a toda e de quebra ía pegar umas lourinha que estivesse por ali. Os cana atirariam em mim mas cê sabe, os balaço podem me atravessar que não matam. Eu ía fugi com ela. Fugi prum lugar que eu não conheço. Fugi dos cana, do fim do mundo. Ninguém me pega não véio. Nem tiro, nem Deus, saca? Eu sou filho de Exu Caveira!

Agora sim Jambo fica satisfeito com o rumo história, quer mais e Jason enfeita:

-Eu nasci no terreiro mano. Diz que nesse dia risco estrela no céu. Assim que pus os olhinho no mundo falaram pra minha mãe que eu era filho dele, do Exu Caveira. Caverinha pros íntimo que nem eu. O rei do mundo. Ela fez homenage pra ele. Enterro aquela tripa que nasceu junto comigo numa encruzilhada. Depois mato um galo preto e sangro tudinho em cima de mim. Por isso eu não morro, pode passa uma jamanta em cima de mim. O sangue do preto Rei corre na minha veia.

-Como cê sabe que tua mãe fez isso? Tu não disse que não sabia porra nenhuma dela?

-Quem me falo esses troço aí foi o nhô Chico, lá do terreiro. Foi ele que disse que minha mãe fez isso.

-E ele não disse o que aconteceu com ela depois?

-Não, ninguém soube mais dela não. Sumiu nesse mundão, quem sabe dia desse encontro ela.

-Se tu é filho do Exu Caveira então tua mãe dormiu com o preto velho?

Novo tapa, dessa vez na orelha proeminente.

-Filho duma égua, tá chamando minha mãe de puta, é? Que cê tá pensando? Tá loco é? Foi um treco espiritual saca? Engravido virge.

Jambo leva o polegar a boca quando não está cheirando cola. Mania de chupar dedo, depois olha enviesado pro amigo.

-Então cê acha que não vai morre no fim do mundo?

-Morre como, mermão? Num morro não. E eu vou ser o rei dessa joça toda, dessa joça que sobrar. Rei do mundo.

O cheiro de cola gruda em seus lábios. Jason observa um salto alto que passa soltando toc tocs no ar. Aquilo sempre o admirou, o modo como as mulheres se equilibravam naquelas coisas finas e pontudas. A batata da perna se contraindo e dilatando. Parecia o saco de cola. Ele sempre via os saltos primeiro. Depois percebia que uma mulher montava em cima deles. Tem que ter rédeas curtas pra montar. A que trotava agora tinha os cabelos vermelhos até os ombros e usava uma bolsa de couro enorme. Jason pensa que até poderia caber dentro daquela bolsa, que deveria ser quentinho ali. Seria como uma mãe canguru carregando seu filhote. Mamãe canguru de salto alto.

- Cara tô doidão bicho, vendo até canguru! E tu orelhudo? Que se ía faze se fosse o fim dessa porra?

-Sei lá, ía tá do teu lado pra ver como que cê ía continuar vivo.

Jason solta um tapão na nuca de Jambo.

-Tá duvidando né seu fila da puta? Tá duvidando de mim? Que sou imortal? Filho de Exu Caveira? É ? Seu fila da puta do caralho!

Jambo passa a camiseta azul desbotada no nariz que escorre.

-Não tô duvidando não... eu só queria ver como cê faz pra não morre.

-Seu fila duma puta, vô te mostra então, cê vai vê só muleque do caralho. Vamo lá pro viaduto que eu vô te mostra como se faz.

-Que cê vai faze?

-Vô pula lá de cima véi. Tu vai vê que eu não morro, vamo logo que é uma pernada até lá.

Jambo obedece, ele sempre obedece e quer ver os poderes do qual o amigo tanto se gaba.

Andam invisíveis entre os transeuntes, ninguém presta atenção neles. Estão mimetizados no cinza e na sujeira, são parte daquele chão e dos paralelepípedos, das vitrines gordurentas e das lanchonetes de sanduíches baratos. Uma parte viva da cidade. As vezes se distraem com um pombo gordo ou uma bituca pouco fumada que acham no chão.

-Depois que eu me joga do viaduto vamo lá no Mac Donaus vê se alguém dá um lanche pra gente. Tô com uma fome da porra.

Andam mais um quilômetro ou dois. O viaduto se torna visível, uma minhoca de concreto que reina absoluta na paisagem. Eles se dirigem para o meio dele onde fica o ponto mais alto. Jambo olha pra estrada que corre embaixo, parece um rio barulhento com a correnteza violenta, faz um sinal da cruz.

-Tem certeza dessa porra, Jason? É muito alto daqui.

-E eu sou homem de volta atrás nas minhas palavras? Relaxa mano, eu sei o que tô fazendo, cê vai ver só...tu é um medroso da porra, já te falei isso?

Jason sobe na mureta do viaduto. Olha pra baixo analisando a situação. O som de um carburador furado abafa a voz de Jambo:

-Faz isso não Jason, parece perigoso demais... não quero ver você estatelado lá embaixo!

-Quieto medrosão! O medo aqui não cabe, eu sei o que tô fazendo.

Ele estende os braços ao alto e grita:

-Por que eu sou filho de Exu Caveira, o Rei do mundo! Sangue negro corre na minha veia! Sangue que não pode morrer.

Jambo tem medo, nunca tinha visto alguém gritar tão alto. Achou até que os carros que passaram puderam ouvir. Jason parecia mesmo um rei entre os homens, mas era apenas um menino.

-Desce cara, faz isso não. Por favor, tô te pedindo. Me deixa sozinho não, eu acredito em você, não precisa prova nada não.

Alguns carros passam e buzinam mas nenhum deles para. São apenas dois meninos de rua onde deveriam estar, na rua. Jambo começa a chorar.

-Desce daí cara, eu acredito em você, precisa prova nada. Faz isso não, cê é o único amigo que eu tenho.

Jason olha pra Jambo, não tem medo nenhum no olhar dele. Tem outra coisa lá. Um fogo colorido, uma maneira de olhar diferente. Nada o fará mudar a ideia de se jogar no viaduto. O céu cinzento abre uma fresta de azul e anuncia o sol que por tanto tempo se escondia. Envolve os dois de um suave amarelo. Jason considera um sinal. Um sinal do pai.

Ele se joga com os braços abertos. Um mergulho no vazio.

Jambo fecha os olhos, espera ouvir os barulhos dos carros freando, a cabeça do amigo estatelando no chão. Pneus quebrando ossos. Vísceras esmagadas. Os gritos. Alguém iria vê-los afinal, eles que eram invisíveis na cidade. Hoje talvez fizessem a diferença, mas o fluxo do rio de metal continua a correr como se nada tivesse acontecido. Ele olha pra baixo e não vê nada do amigo. Corre do outro lado e vê o caminhão de serragem que se distancia. Jason está de pé em cima da carga macia, acena os braços e grita:

-Não te falei seu fila da puta!

O caminhão segue o fluxo do rio, Jambo acena com a mão enquanto Jason se vai, não sabe se vai ver o rei do mundo de novo mas fica feliz por conhecê-lo.

...

Conto publicado na "Seleta de Contos de Autores Brasileiros" edição 2010, pela Câmara Brasileira de Jovens Escritores.

Sheilla Liz

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