O MILAGRE


      Acordou cedo, pegou o revolver que estava escondido dentro de uma caixa de sapatos debaixo da cama. Vestiu-se: camisa regata, bermuda colorida e chinelas havaianas azuis. Miguel era um jovem que gostava de aventuras, sempre saia com os amigos para farrear e se divertir sem se preocupar com nada. Naquele dia estavam com ele os seus três amigos inseparáveis, eram eles: Generoso, um cara estranho, que ria o tempo todo, mas do que ele ria e por qual motivo ria, nem ele sabia explicar. Zacarias, divertido, cara simples, baixinho e simpático como aquele do programa “os trapalhões” do qual herdou o apelido. E finalmente Celso, sujeito de mil e uma faces, que ia do racional ao irracional em questão de segundos.
      Miguel tinha dezessete anos e era um ano mais novo que os demais. Fumou seu primeiro baseado aos doze, e aos dezessete tomava chá de cogumelo enquanto ouvia musica nos pontos mais altos da cidade. Gostava tanto de curtir os efeitos alucinógenos dos cogumelos que muitas vezes comia-os aos pedaços mergulhando-os em leite moça para tirar o gosto de mofo do fungo. Ele era uma espécie de cobaia humana da loucura, tomava de tudo, experimentava de tudo, mas, nunca injetou –“no meu sangue não deixo injetar nem vitaminas” – ele sempre dizia com um orgulho mórbido.
     Aquele quarteto era um barril de pólvora, se reuniam quase todos os finais de semana e feriado em busca de diversão, drogas e aventuras. Era dia doze de outubro, dia de Nossa Senhora de Aparecida, a padroeira do Brasil. Escolheram o campo de aviação da cidade como paisagem para mais uma das suas festinhas movidas a álcool e muitas drogas. O lugar ficava quase sempre vazio, já que avião ali era ate difícil de dizer de quanto em quanto tempo aterrissava. Com uma quantidade considerável de maconha e vodcas na cabeça, Miguel sacou a arma e sem que os outros percebessem atirou em direção a uma árvore. Todos levantaram assustados, e ele riu como um ser inocente e ao mesmo tempo covarde. Passado o susto a arma foi de mãos em mãos sendo manipulada; Ora um, ora outro, um tiro em alguma direção disparava.
      Algumas horas depois Miguel foi surpreendendo com a arma apontada para sua cabeça, era Zacarias, que com um olhar de bandido e palhaço lhe disse: “vou te matar Miguel!” sem se desesperar Miguel pediu para Zacarias que parasse com a brincadeira – “está duvidando eu vou te matar mesmo” – disse Zacarias com a arma agora a alguns centímetros apenas da cabeça de Miguel que estava sentado na grama. Com um reflexo e uma agilidade que ate hoje nenhum daqueles jovens soube explicar, Miguel bateu com a mão direita no tambor do revolve no exato momento em que Zacarias puxava o gatilho. Com a mão direita tingida de pólvora Miguel procurava desesperado em seu corpo onde teria sido atingido pelo tiro. Enquanto isso, Zacarias caia estatelado na grama como se o tiro tivesse saído pela culatra.
      Generoso e Celso olhavam espantados e ao mesmo tempo embasbacados como dois viajantes no tempo, com um olhar no que estava acontecendo e outro em um canto qualquer de um patético universo... Miguel encontrou o buraco da bala no chão a uns dez centímetros de sua coxa direita e, só então suspirou aliviado, levantou-se e olhou para o céu enquanto passava desesperadamente as mãos pelos cabelos. Ele nunca tinha visto a morte assim tão de perto. Nem mesmo em seus delírios psicodélicos movidos a vinho tinto e cogumelos a morte havia se apresentado de maneira tão intima.
      Zacarias aos poucos foi se recompondo e quando por fim visualizou a imagem de Miguel vivo, sorriu aliviado e ao mesmo tempo caiu em desespero...  “eu ia te matar” - Zacarias dizia entre soluços e lágrimas – “para mim a arma estava descarregada, eu mesmo a descarreguei há pouco tempo atrás, queria só te dar um susto, mas quase que eu te mato sem...” Então uma nuvem cinza tomou conta daquele lugar, e o que era festa virou drama. A loucura passou subitamente como se tivessem tomado um antídoto. E então um a um foram entrando no carro e fizeram o caminho de volta sem trocarem uma única palavra ate chegarem a suas casas.
      Alguns anos depois, Miguel e Zacarias se reencontraram na grande cidade de São Paulo, não se viam já fazia oito anos. Zacarias abraçou Miguel como abraça o filho um pai, e mesmo tantos anos depois tremia e com a voz embargada, a única frase que conseguiu pronunciar foi: “eu ia te matar Miguel eu não sabia que aquela arma estava carregada, queria só te dar um susto, mas quase que eu te mato sem...”.


REEDIÇAO