SEU JESUS E O CORÍSCO

- Alô!

- Oi, Chico, é a mãe! Tudo bem aí?

- Oi, mãe. Tudo. E a senhora?

- Estou bem. E as crianças e a Neide?

- Todos bem, graças a Deus.

De repente, aquela sensação.

- E o Pai?

- Está bem, já está dormindo.

- ...

- Você está sozinho?

- Sim, a Neide e as crianças foram ali na Jô.

- Você já sabe quem morreu?

Pronto! Era isso! A mãe costuma ligar sempre, mas, eu sinto no timbre da sua voz, quando ela quer me dar notícia de algum conhecido ou parente que morreu. É carregado de um ponto de tristeza.

Depois que passamos dos 40 começamos a “ler” uma lista de nomes com o “prazo de validade” vencido: tia fulana, 86, tio beltrano, 72 – foi o cigarro... A mãe da dona Rosa, - Mas, ela ainda estava viva?

O pior é quando é algum amigo da idade da gente. Na memória, eles estão com uns 15 ou 20 anos a menos... – O Gil, lembra dele? – Foi um acidente. Como não lembrar do velho companheiro de boas risadas, papo fluido, cervejas geladas... Eu, ele e o meu tocaio, primo dele, que se foi ainda no tempo que eu morava lá, acidente também.

- Lá no Sul, mãe?

- O Seu Jesus, lembra dele?

- Claro... Mas, ele já estava bem velhinho, não?

- 90 e poucos, mais de 3, eu acho...

- Pois é, naquele tempo o pessoal já chamava ele de o “Véio Jesus”.

- Ele sempre foi um homem forte, mas a idade chegou...

- É, fazer o quê?

- É... Então, ta! Deixa um beijo para as crianças e a Neide.

- Se ela voltar logo, peço para ligar para a senhora... Beijo!

- Outro! Boa noite!

- Para a senhora também. Tchau.

- Tchau,

...

O Seu Jesus! Caramba! Eu nem sabia que ele ainda vivia.

Português com Índio, pele acobreada, cabelos pretos, lisos, fios grossos e abundantes. Olhos negros, um sorriso fácil, humilde, sincero, puro, silencioso; o sorriso dele era silencioso, acho que pelos vistos na vida. Homem da paz, ainda que soubesse contar coisas do tempo das revoluções, aquelas antes de 64...

De vez em quando ele aparecia lá em casa trazendo mandioca, moranga-de- mesa, milho verde. O milho do Seu Jesus era o mais gosto, tinha um frescor que na verdade, hoje, eu sei, provinha da alma dele que saía pelas mãos grossas e calejadas de cabo de enxada e davam vida àquele alimento, o milho verde dele chegava a ser doce, perfumado... Enchia a mesa de alegria e me levava por aqueles lugares de céu azul profundo que eu tanto amava.

Na fazenda havia três ambientes distintos: o das coxilhas, terra vermelha, mais plano, era mecanizado e dividia algumas áreas de pasto para o gado, açudes nas baixadas e recortes de mato; uma região de transição onde a Terra se dobrava, havia capões de mato, nascentes, potreiros, velhos pinheiros e aflorava algumas pedras aqui e ali, terra preta nas várzeas. Era o local da agricultura de subsistência, do plantio das forrageiras, do mandiocal, do milho de pipoca, da cana-de-açúcar, do feijão preto, do carioquinha, da várzea úmida com o córrego cortando pelo meio, do açude, da sede, do galpão das máquinas e o terceiro ambiente era onde a Terra mudava de vez, tomando ares de montanha e descendo por encostas íngremes, cheias de pedras gigantes, capoeiras e mata, formando aqui e ali platôs de terra boa. Nessa encosta fértil, numa área de capoeira, é que o meu pai cedera um canto de terra para o Seu Jesus fazer um roçado.

Saindo da sede, cortava a montanha uma estradinha de dois trilhos que vinha circundando a montanha, imitando o traçado do rio até quase fazer a curva do nascente, ali entrava no mato. Por ela passava a carroça do Seu Jesus, ou ele mesmo, subindo a pé a encosta, com um balaio nos ombros, voltando do seu roçado que chegava até na várzea, bem perto do rio. Depois da nossa colheita, era a vez de darmos u'a mão a ele para retirar a sua safra da montanha.

Dava um frio na barriga entrar no mato em cima da carroça quando íamos buscar as espigas do milho maduro colhido pelo Seu Jesus, que nos esperavam pacientemente em montes cobertos de cana seca de milho. Logo depois da cerca, uma curva para a direita e a estradinha despenhava-se entre as pedras e a terra lisa, lançante abaixo; pequenas nascentes marejavam o barranco de água sempre fresquinha, onde nasciam samambaias, pés-de-urtigão e, nalgum buraco, o Ferreiro fazia o ninho. Era comum encontrarmos cristais de pedra azulados, cor-de-rosa e tantas outras formas e cores de pedrinhas. Lá em baixo eu conheci uma planta que ele chamava de Uvarana. Sempre trazia algumas pontas no balaio para dar aos cavalos. Até hoje não sei o nome correto daquela planta, o que conheço de mais semelhante é Dracena Massangeana, apenas que a Uvarana era de um verde só, no mais, comportava-se do mesmo modo: brotando onde era cortada, formando uma touceira com diversos ramos, enraizava facilmente dos pedaços dos colmos cortados.

A mesma estradinha passava entre os pés de caquis, pelo pátio da casa da sede, ao lado do parreiral, contornava uma pequena nascente que servia o açude dos patos, que ficava entre a casa principal e o galpão das máquinas, passava pela frente do galpão e bifurcava-se: à esquerda, acompanhando a cerca do potreiro da frente, levava até a lavoura que ficava no planalto em cima do morro, na direção Sul, à direita era o caminho da saída da Fazenda. Passava entre uma cerca e um corte feito num morro cercado por um muro feito de pedras empilhadas, servira para limpar o terreno e, ainda assim, havia muitas delas aflorando na grama sempre-verde; pareciam lingotes de ferro, na cor e no peso. Fazia um S invertido e alongado, ao passar por ali, cuja ponta terminava na barragem do açude da várzea e apontando na direção do pôr-do-sol. Dali, depois de uma pequena elevação, descia pela terra vermelha escura e úmida da várzea. À direita, costeava a mata, a mesma que circundava a Fazenda, acompanhando o rio. Poucos metros mais e começava outra elevação, no meio dela, à esquerda, dava entrada ao pátio da casa do Luiz; pouco mais à frente, à direita, contornava o mato e ia para o Norte, em direção à Vila, perto da qual morava o Seu Jesus.

Assim era no tempo que eu era menino, antes de ter saído de casa para estudar. Depois, bem na frente do galpão das máquinas, fora aberta a cerca e a estradinha passou por baixo de uma porteira e subiu pelo potreiro da frente até quase no alto, onde foram construídas as instalações suinícolas, criatório de porco mesmo, apenas que dentro dos padrões modernos, assim como, no meio do caminho entre o galpão e a lavoura do Sul, surgiram dois aviários, os galinheiros modernos, com energia elétrica, aquecimento a gás e alimentadores automáticos, e mais dois aos fundos da casa do Luiz. Ele tornou-se o capataz da “galinhada”...

Pois foi ali, onde a estradinha se espalhou por outros rumos que eu cortei o caminho do Seu Jesus com u’a modernidade. Eu já estava formado e quis por o meu dedo de melhoramento na Fazenda. Resolvi otimizar o pastoreio no potreiro da frente fazendo manejo da pastagem através piquetes. A maneira mais rápida, econômica e moderna, para a época, era usar as cercas elétricas. No caso, um fio bem baixinho para as ovelhas e o outro na altura normal para o gado. O aparelho, instalado dentro do galpão, transformava 110 volts em 12 e mexia na amperagem, resultando numa descarga intermitente, inofensiva, mas de um choque de amolecer as pernas de um vivente. Um fio, vindo da cerca até uma cancela que ligava a energia quando fechada, era o único inconveniente para nós que estávamos acostumados a passar livremente por ali, entretanto, deixava livre o caminho para quem contornasse o galpão pela direita de quem saía e pela esquerda de quem chegava. Simples.

Não, não foi. Para encurtar a história, eu passei a representar um perigo aos desconfiados habitantes da Fazenda, principalmente às mulheres e crianças, distraídos por natureza, pelo molejo do tempo fluindo lento e a mesmice das suas rotinas de cortar as forrageiras, ordenhar as vacas, fazer os queijos, cuidar das suas hortas domésticas, jogar milho aos patos que substituíram as galinhas caipiras por conta da necessidade imposta pelos modernos aviários.

No dia em que ligamos a cerca, os murmúrios ainda não haviam começado e havia uma expectativa gaiata em mim, no Luiz e no Nelson; no tio e no Kide havia uma desconfiança curiosa. Eu, que conhecia cercas elétricas nos campos experimentais da faculdade, fazia uma idéia das boas risadas que daríamos ao ver o gado desavisado e xucro para a modernidade, descobrir que raios havia naquele fio.

Quando o Seu Jesus desceu para o roçado, levando a sua panelinha de comida enrolada num pano branco e um garrafão com água, já esticávamos e isolávamos alguns fios, tarefa que só terminaria lá pelas 16 horas.

- Bom dia, Seu Jesus! Não caiu da cama hoje?

Que nada. O Velho já havia ido até a cidade. Cumprimentou a todos e com o seu riso macio, com os seus erres arrastados e arrematou:

- ...Fui comprar uns “rrremédios” pra patroa que anda meio “encrrrencada” do “rrromatismo”.

Como ele só faltava perguntar para que tanto fio o Nelson brincou:

- Cuidado aí, “veio”, que isso dá choque. Quando senhor voltar à tarde, não vá se atracar nos arames.

- É, “véio”.

Disse o Luiz, que gostava de fazer troça e mangar com ele, imitando o seu modo de falar:

- Isso segura até touro, o senhor toma um choque aí que é capaz até de “rrressuscitar” o falecido...

Gargalhada geral.

Ele só ria baixinho, parecendo que soluçava sem fazer barulho.

Expliquei-lhe como funcionaria a cancela, mostrei-lhe o isolador no qual ele teria que por a mão, mas, se ele não quisesse mexer na cerca, era só contornar o galpão.

Como sempre, ele sorriu silencioso e com a desconfiança curiosa de uma criança diante de uma novidade, tirou do bolso um lenço branco, o amarrou sobre a cabeça, e se despediu:

- “Inté”! A prosa fica pra “despois”, que hoje “to” atrasado.

Ele enrolava os quatro cantos do lenço que ficava ali, preso à cabeça, protegendo-o do sol. Tinha essas coisas que eu observava nele. A outra era a capacidade e a rapidez com que trançava um balaio de taquara, às vezes, descia sem nada e à tardinha voltava carregando um cheio de pontas de Uvarana, algumas raízes de mandioca e duas ou três morangas-de-mesa dentro.

- “Inté”! Seu Jesus.

E se foi, com o seu passo cadenciado, em direção ao perau. A casa dele era uma modestíssima casa de madeira à beira da estrada, ela, nem qualquer outra que tivera, não tinha energia elétrica, apenas luz de candeeiro e lampião a querosene – “carosene”, como ele dizia.

Batemos duro o resto do dia. Às 16 horas e 20 minutos, energizamos a cerca, separando um pedaço do pasto à direita de quem subia pelo potreiro da frente. Escutávamos o téc; téc; téc... do aparelho liberando a energia e víamos o led vermelho no painel, mas ninguém se arriscava a experimentar se funcionava. Ali ficamos na varanda do galpão, nos instigando. O tio trouxe o chimarrão e a expectativa era de ver quem batizaria a cerca.

Não demorou e uma ponta de gado apareceu, vinda das bandas da estrebaria. Bem na frente vinha a tucura-roceira que não respeitava nem cerca de 8 fios, seguida pelo “touro-véio”, que era como chamávamos o Holandês de mais de meia tonelada de corpanzil, puxando uma renque de novilhas, bezerros e ovelhas que vinham por um carreiro de terra batida direto para a cerca. O pedaço separado do potreiro tinha um dos melhores pastos de sempre-verde e, quase no final, era pontuado de bracaatingas que sombreavam agradavelmente a encosta. Invariavelmente, ao cair da tarde, era aquele o destino da tropilha.

Ninguém respirava quando vimos a tucura chegar perto da cerca. Todos tínhamos ganas de vingança por tantas vezes que nos fizera correr pelas lavouras atrás dela. Como seria o encontro da puladora de cerca diante de um único fio? Quase uma decepção. Ficou pastando por perto, foi para lá e para cá, fez que não o viu ou o desprezou por completo, passando o pescoço magro sobre ele para abocanhar o pasto do outro lado. Descuidada, encostou a barbela no fio e téc! Deu um pulo para trás. Se questionando toda, só descobriu aquela insignificância a sua frente, descrente o cheirou, palmo e meio longe, e nada descobriu. Por via das dúvidas, esticou toda a língua e tocou a pontinha no estranho... Menino, até hoje tenho ataque de riso quando me lembro da cena: ao mesmo tempo em que se esticou toda, o rabo parecendo um cabo de vassoura, soltou um berro grosso de zebua enroscado na garganta e saltou uns três metros para trás, caindo sentada.

- Funciona!

Exclamou o Nelson. O Luiz se engasgara com o chimarrão e eu me segurava no cepo da varanda para ri á vontade. Os incrédulos se olhavam e caiam na risada. O “touro-véio” entrou de lado, pachorrento e encostou a paleta no fio. Deu para ver o couro dele tremendo. Tomou aquele susto e, sem entender nada, continuou pastando. De repente, o tocou de novo. Olhou desconfiado para aquele inocente fio, afastando-se uns dois metros dele. Para o resto da sua vida nunca mais chegou perto de fio algum. As ovelhas recebiam o tranco, travando as quatro patas saltavam para trás e saiam correndo, balindo e esfregando o nariz no chão...

Ainda rindo, nos dispersamos. Eu e o Luiz fomos para a casa dele, como sempre eu fazia antes de ir embora. Sentávamos na soleira da porta, dávamos uma bicada na pinga de alambique que eu mesmo fabricava, pitávamos um crioulo feito de fumo de corda enrolado na palha de pipoca e ficávamos proseando, contando causos até quase o pôr-do-sol, às vezes até anoitecer. Dali tínhamos uma visão privilegiada da frente do galpão até no final da cerca, lá em cima perto da lavoura.

Na farra, nos esquecemos completamente do Seu Jesus. Quando o sol da tarde já dourava tudo, lembramos automaticamente dele por causa da hora. Normalmente ele dava uma paradinha na casa do Luiz. Arriava o balaio no barranco e vinha beber um copo d’água fresca, pitava um amarelinho e trocava um dedo de prosa.

- Um “chimarrrão” eu aceito.

Dizia ele, arrastando os erres, mas não tocava na pinga quando oferecíamos um gole da purinha.

- E o “Veio”?

Disse o Luiz, saltando em pé.

- Já deve estar chegando!

Espichei o meu pescoço para as bandas do galpão bem a tempo de ver um balaio de Uvaranas saltando para o alto. Depois, o Seu Jesus passando por baixo do fio, juntando o extravio pela estrada. Uns 10 minutos depois ele encostava o balaio no barranco e, rindo mais que o costume, aproximava-se da soleira. Nós, com a melhor cara-de-pau que conseguimos fazer, o recebíamos sérios.

- Puxe um cepo, homem!

Convidou o dono da casa.

- Boa tarde, Seu Jesus!

Cumprimentei.

- Boa tarde! Boa tarde!

Dizia ele, rindo muito.

- O senhor está feliz hoje, Seu Jesus. O que é que o senhor viu lá na roça?

Perguntei.

- Vai ver que uma gringa atravessou o rio.

Gracejou o Luiz.

A Dona Leda, que saíra na porta com um copo d’água, chamava a atenção do marido, como sempre o fazia por causa das brincadeiras dele, já sabia do acontecido e mal continha o riso:

- “Gigio”, respeita o “home”. “Tarde”, Seu Jesus!

- “Tarde” Dona Leda!

Pegou o copo e ria. Bebeu a água em duas ou três pegadas, parando para rir e não engasgar. Sentou-se na cadeira, tentava dizer alguma coisa, mas apenas ria, espichando o pescoço na direção do galpão.

- Mas, o que aconteceu que o Senhor está tão alegre hoje?

Perguntei, já não agüentando mais a vontade de rir.

- Pois é.

Disse.

- Eu vinha quieto, de cabeça abaixada, contra o “Sor” quando “me alembrei”. Parei na hora, mas levei a mão “pra” frente e o “rrrelójo” encostou no arame. Levei um corisco que me “espaiou” o balaio pra longe!

Todos rimos à vontade, mas, só eu guardei no meu coração uma certeza. Se aquele homem, que não conhecia a eletricidade se referiu a ela como a um corisco era porque, nalgum dia da sua vida, havia experimentado essa força da natureza. Dito e feito!

- Mas, Seu Jesus, o que é um corisco?

- É um “rrraio” desses que se “espaia” pelo céu em dia de garoa, mas não “arrrebenta” perto.

- O Senhor já tomou um raio?

- Foi quando eu era moço. Eu “tava” lavrando com uma junta de boi num dia fechado e pegou a “garoá”. Quando eu vi, o “rrraio” “rrrebentou” num Pinheiro e um corisco bateu no arado e me “jogô” longe. O “Barrroso” custou uma meia hora “pra” se “alevanta”. O Pintado pegou medo de “rrraio” que era só “rrrelampiá” que ele ficava passarinhando e eu tinha que “largá" do serviço.

...

Morreu de velho, o Seu Jesus. Como será morrer de velho? Com quem ele conversava? Para quem ele deu os seus últimos sorrisos silenciosos? O que será que ele fez com o mundo de memórias que não contou para ninguém?

Não sei porque o imaginei sorrindo, segurando um arado leve no ar, fechando os olhos e brandindo um par de rédeas imaginárias:

- Vai “Barrroso! Vai Pintado! Olha a verga!

Lavrando nuvens por um céu azul como o da minha terra.

Chico Steffanello
Enviado por Chico Steffanello em 11/11/2006
Reeditado em 03/05/2008
Código do texto: T288806
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