PROCISSÃO

        Tinoco levantava-se cedo. Tomava banho, botava perfume. Alisava os cabelos com brilhantina, costume do tempo em que o pai tinha uma pequena barbearia no Beco da Fome. Vestia seu predileto terno branco que usava com orgulho. Era bem apertadinho, estilo antigo, mas Tinoco não fazia questão de mudar. Diziam que era promessa. Tinha sido duro para ele quando a Rita, morena trigueira, sua primeira e única noiva, fugira para casar-se com um vendedor ambulante da cidade grande. Tinoco jurou nunca mais botar os olhos noutra mulher e cumpriu a palavra. Por isto, todos os anos ele era o primeiro a se aprontar para puxar o cortejo da Santa Padroeira pelas ruas estreitas da cidadezinha onde nascera, crescera e onde jurava que iria morrer. Seu maior prazer e orgulho era carregar o crucifixo maior para abrir caminho por entre o povaréu que contornava a Igreja no dia de Nossa Senhora do Amor Perpétuo. Tinoco chegava sempre à Igreja antes das 5 horas. Arrumava os paramentos, dava instruções para a troca de água e das flores nas jarras, limpava os castiçais, acendia as velas e tomava nota de tudo que fosse necessário para dar brilho à procissão. Poder-se-ia dizer que ele era o responsável por toda a campanha religiosa. Era o destaque n.1.
         A Pulcina, vestida de preto com gola de renda branca, solteirona, cujo romance mal começado e já acabado por causa de um charuto que o Dr. Libório não quis deixar de usar, e que Pulcina detestava. Dava-lhe enjôos no estômago. Libório era pessoa de destaque, dono de fazenda e mercearia. Pulcina, mesmo assim, preferiu não casar, garantindo que Libório, por si mesmo, compreenderia seus motivos e abandonaria o charuto. Mas Libório não deu o braço a torcer e continuou tinhoso com seu charuto que dava-lhe ares de Grande Chefão e não queria se diminuir diante de outros figurões da cidade que, também como ele, tinham a presunção de usarem os melhores charutos importados. Depois disso, Libório casou-se com uma professora da Capital, Dona Maria Angélica, muito fina, de muito trato, o que causou reboliço na cidade por longo tempo. Se Pulcina ficou despeitada, não o demonstrou. Continuou impertigada até que um dia levou um tombo ao escorregar numa casca de banana perto da Igreja, que a deixou meio coxa. Quem a socorreu nesse mau momento, foi o Tinoco, que chegava naquele instante para a missa. Daí então, Pulcina tornou-se uma espécie de amiga e confidente do Tinoco e vice-versa, certamente com um pouco de reserva de ambas as partes. Pulcina já não tinha mais esperanças de casar e passou a frequentar mais assiduamente a Igreja. Era de casa para a Igreja, da Igreja para casa, todos os dias, umas vezes de manhã, outras vezes, à tardinha, e excepcionalmente, à noite, quando havia festas de barraquinha e leilão de prendas, da qual fazia parte. Era nessas poucas vezes que se via Pulcina mais animada até com um brilho diferente nos olhos. Um psicólogo diria que era motivo de "transferência de afeição" ou coisa parecida. Mas para a cidade, Pulcina e Tinoco eram uma espécie de raridade, coisas de estimação que enchia de orgulho os seus habitantes, geralmente pessoas caseiras que depois do trabalho, reuniam-se para bater papo nas varandas, à noite, ou no clubezinho para jogar xadrez e damas. Outros preferiam tomar seu costumeito "traguinho" com os amigos no bar mais próximo, para discutir os acontecimentos mundanos, política e esportes. Todos se conheciam e por isso sabiam quase tudo da vida uns dos outros. Para eles, Pulcina e Tinoco não podiam cometer qualquer deslize. Alguém disse que
quando morressem mereciam ser canonizados. E era na procissão da Santa Padroeira, que eles mais se destacavam. Diziam: " Lá vai o Tinoco. Lá vai a Pulcina" , com orgulho. Depois apontavam o Dr. Libório com seu chapéu numa das mãos e com a outra amparando um dos lados do andor da Santa, sobre os ombros, juntamente com os seus companheiros ricaços. Eles faziam questão de carregar o andor, para que todos vissem como eram crentes e piedosos, embora muitos operários os chamassem de gananciosos, menos o Libório que era o único que apertava as mãos dos mais humildes, não se sabe se por simplicidade ou se por hipocrisia. As senhoras beatas, muito aprumadas, cochichavam entre si sobre esses assuntos ou falavam dos problemas familiares, mexericos da vida alheia. Só silenciavam quando o padre aparecia para pedir ao Tinoco que desse início à procissão. Então cada qual queria parecer melhor aos olhos do padre e faziam um tremendo sacrifício: ficarem de bocas fechadas!
         Dona Maria Angélica raramente aparecia nas procissões, primeiro porque os filhos eram pequenos. Veio um, depois outro, e outro. Eram já três. Quando estavam mais crescidinhos, ela os levava vestidos de anjinhos, para satisfazer o Libório. D. Maria Angélica fazia questão que os filhos frequentassem a Escola Pública como ela o fora na infância. Tinha orgulho disso, pois como dizia, era também professora primária e tinha de prestigiar a classe. Esse modo de pensar, angariou-lhe simpatias das colegas mais pobres e de todas as mães que tinham seus filhos no Grupo Escolar da cidade.
          Tinoco dava o sinal para a saída da procissão, ao mesmo tempo em que erguia o CRUCIFIXO bem alto para que todos o vissem. Nesse momento, seu rosto se transfigurava,tornava-se mais róseo, e os olhos mais brilhantes, suas mãos muito firmes. Parecia extasiado diante de algo incomum. As mocinhas e os rapazinhos que vinham logo atrás dos anjinhos, começavam a entoar os cânticos de louvor a Santa Padroeira, logo acompanhados pelas senhoras beatas e os fiéias que vinham por último. O padre e o sacristão ficavam sempre no centro diante da imagem, ornada de flores, com seu manto azul, todo bordado a ouro. Tudo parecia resplandecer como um
sonho. O cortejo aumentava, à medida que ia passando pelas ruas centrais. Vinha gente de todos os lados, todos participavam do grande momento. "Louvado Seja Deus Todo-Poderoso! Louvado Seja Seu Santo Nome! Louvado Seja Jesus Cristo! Louvada Seja Nossa Senhora do Amor Perpétuo! Para Sempre Sejam Louvados! " Todos repetiam as palavras do padre. Uma pequena banda de música tocava um hino em louvor à Nossa Senhora do Amor Perpétuo. Este era o momento mais solene da procissão. Depois do hino, paravam na esquina e o padre fazia um sermão explicando os motivos da fé, do amor e da caridade cristã. Novamente a banda tocava e a procissão seguia dando voltas pela cidade até entrar novamente na rua da Igreja. Ouviam-se fogos de artifícios coloridos. Era nessa hora que a Santa Padroeira atingia o ponto culminante da escadaria da Igreja, onde começava e terminava todas as procissões. Então os fiéis se despediam da Santa Imagem com beijos ou acenando com lenços brancos. Repetiam-se os fogos de artifícios e aos poucos o povaréu ia se espalhando, as famílias voltando para suas casas, muitas alegres, outras tristonhas, saudosas talvez, risos e conversas na multidão. Mais um grande dia terminava. Noite já alta, poucas pessoas ficavam na rua, entre elas, boêmios, que se não eram religiosos, também não faziam pouco da crença dos demais. Ficavam no botequim batendo papo, bebendo ou jogando cartas. Estes eram os únicos que não sonhavam durante a noite, pois dormiam durante o dia.
           As luzes da Igreja há muito se apagaram. Tinoco dormia seu sono justo. Pulcina suspirava mais um lindo sonho. A cidade voltava a sua calma normal. E assim foi durante os 73 anos de vida do Tinoco e 68 anos de vida da Pulcina. Pulcina morreu tísica e o Tinoco já muito velho, magro como sempre o fora, de úlcera do duodeno. Paixões da vida... Mas a procissão continuou e continua a sair todos os anos, embora com algumas mudanças, rapazes e moças mais alegres, mais desembaraçados, meninos irrequietos, padre mais moço, sacristão mais diligente, muita conversa, só a Santa é a mesma, com manto novo ainda, azul bordado à ouro,figurões de destaque, velhos e velhas, um pouco menos beatos, mas satisfeitos com sua fé. A banda já não toca tão bem como antes, faz mais ruído, a melodia é mais moderna, as ruas mais movimentadas. Mas o dia é sempre de festa. É o dia da procissão de Nossa Senhora do Amor Perpétuo!
Victoria Magna
Enviado por Victoria Magna em 30/06/2005
Reeditado em 14/04/2007
Código do texto: T29325