Desperança

Ele estava deitado em sua cama lendo um livro quando, sem aparente motivo algum, sentiu uma profunda angústia. É certo que sua vida financeira não andava bem das pernas e que o trabalho, além de estressante, não lhe aprazia. Porém, nunca fora de reclamar dessa situação e muito menos de se compadecer dela. Não era afeito a autopiedade. De qualquer forma, o sentimento veio com força e a vontade era de chorar copiosamente.

Começou a pensar nos motivos de se sentir assim e sua mente começou a visitar, de maneira desordenada, vários momentos de sua vida. Mulheres que magoou e descartou ao longo do caminho; amigos que por um motivo ou por outro decepcionou; as coisas ruins que disse em momentos de descontrole àqueles que amava e ainda ama, mas acabou afastando-se por orgulho ou vergonha; as escolhas que fez e que se mostraram equivocadas, levando-o para longe de seus sonhos; os conselhos solenemente ignorados e que se provaram sábios; e mais.

Concluiu que a angústia originava-se de arrependimentos, de culpas e da sensação de tempo perdido. Como se sempre tivesse escolhido errado e que houvesse desperdiçado todas as chances que teve de se realizar e de ser feliz. Uma dor começou a martelar sua cabeça e decidiu caminhar pela casa. Olhou para seus livros, seus CDs, seus DVDs, suas traquitanas eletrônicas que tanto gostava, suas coleções de carrinhos, motos e bonecos, o lar que resumia a sua vida. Não conseguiu enxergar sentido em nada daquilo.

Pegou um cigarro e foi para a varanda. Nunca fumava dentro de casa, pois não gostava do cheiro que o seu vício deixava. Enquanto tragava e soltava a fumaça, olhava para a rua, para o céu estrelado, para a lua brilhante e se sentiu pequeno como nunca antes. Quase quatro décadas nesta terra e não sobrava uma coisa qualquer que se aproveitasse de sua vida. Nada para ser lembrado. Nenhum feito que merecesse registro e posteridade. Sentiu-se um inútil, um fracassado, um embuste.

Aos poucos, a angústia começou a dar lugar à revolta. Começou a culpar os outros pelos seus erros, pelas suas escolhas e pelas suas frustrações. O examinador que não lhe deu nota suficiente, o irmão que não lhe emprestou o dinheiro que precisava, o amigo que lhe virou as costas por causa de uma mulher, a namorada que o largou por causa das outras, até mesmo os pais que não lhe deram uma posição social melhor. Eram pensamentos tolos e logo os descartou para abraçar a culpa que veio ainda mais forte.

Ele voltou para dentro de casa, foi até a estante e pegou uma das garrafas de uísque que nunca bebia, pegou um copo e o encheu. Colocou a garrafa e o copo sobre a mesa. Foi até seu quarto, pegou o estojo em que guardava sua Beretta 9mm, sua arma dos tempos de oficial do Exército. Forrou a mesa com um pano e pegou o material de limpeza. Entre um gole e outro de bebida, desmontou a pistola com extrema facilidade, quase que mecanicamente.

Peças sobre o pano dispostas da mesma maneira que aprendeu quando do serviço militar. Encheu o copo de novo e começou a limpar as peças. Era quase uma terapia que o ajudava a pensar melhor. Enquanto remontava a arma, chegou a uma solução. Poderia não ser a melhor, mas era a única que fazia sentido. Seu pertence favorito estava montado, carregado e reluzente.

Levantou, encheu o copo de novo e o levou, junto com o maço de cigarros e a pistola, para a varanda. Acendeu o cigarro e o fumou lentamente, bebericando a bebida envelhecida e destilada de grãos. Não sentia prazer algum nisso. Jogou a guimba na rua e depositou o copo e o maço no beiral. Ato contínuo, pegou a arma, encostou na têmpora direita e disparou.

O corpo jogado no chão da varanda vazava uma grande quantidade de sangue e, com ele, em seu vermelho escuro, todos os sonhos, toda a angústia, todas as frustrações, toda a culpa, todas as escolhas, todos os erros, todos os fracassos, toda a revolta, todos os pensamentos tolos e cada um dos anos das suas quase quatro décadas de vida.

Há algo mais efêmero?

Fabrício Mohaupt
Enviado por Fabrício Mohaupt em 13/07/2011
Código do texto: T3092645
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