Ocultos da noite paulistana

20h23m no cruzamento da Av. Paulista com a praça Oswaldo Cruz.

Uma garota maltrapilha chegava próximo ao vidro de um carro:

- Ô moç...

- Não tenho, desculpe...

e o vidro se fechou.

No outro carro:

- O senhor poderia por favor...

- Vai sua putinha, não quero te comer hoje!

Chorou.

Usar da educação em nada adiantava, os vidros continuavam a subir e as respostas pioravam a cada minuto passado...

Nas noites menos frias, ela dormia ali mesmo, na praça, em baixo de uma árvore.

- Sabe Dona árvore, a senhora tem sido minha única amiga, está sempre me sorrindo, mas vou te confessar, não aguento mais esta vida, há dias que tento encontrar alguém que queira conversar comigo e tudo que encontro é estupidez...

- Você tem onde morar garota?

- Tinha, mas meus pais se foram, cansaram deste mundo e partiram juntos numa destas noites para outra constelação, que Deus os tenha. Fui morar com uma tia que queria que eu me prostituísse aí fugi de casa...

- Tenho te reparado nos faróis e visto o que anda acontecendo, e confesso, fico feliz quando vem conversar comigo, mas fico irritadíssima quando te olham torto e te chamam de louca...

- Liga não, só pra nós? Na casa deles eles conversam com as plantas...

A árvore riu.

A menina continuou:

- Eles crescem e esquecem de que não vivem sozinhos no mundo, querem tudo a seu jeito e quando conseguem chegar próximo, perdem a estrela interna, a simplicidade, sacrificam a si mesmos. Mas nem todos são assim sabe? Alguns já foram até pra longe e continuam humildes, muitos destes já conversaram comigo, até me levaram pra comer pastel...mas é que quando a gente recebe um não, esquece destas pessoas e se dedica apenas a odiar a última...

- Você também é assim, pequeno ser-humano?

- Sim, também sou às vezes, mas estou aprendendo a mudar, é só não ligar, pois os amigos de verdade nem deixam a gente lembrar...

- Quem são seus amigos de verdade?

- Bom, além da senhora, tem o cacto ali do vão do Masp, nos dias de chuva durmo lá. O conheci quando um dia sentei ali no vão e fiquei à toa, e um rapaz conversava com a namorada, dizendo que o que mais tinha vontade nas noites quando saía do escritório, era pular naquela água só para contrariar todo mundo, mas era conhecido ali e podia perder o emprego, ele dizia que sentia vontade de fazer aventuras na vida, pois tudo já era rotina e a única aventura que tinha feito ultimamente, era quando o chefe virava de costas e ele entrava no Orkut, mas também estava cansado, não tinha mais graça, aí ele desenhou um rosto num cacto plantado ali, e sem saber deu vida a ele. a namorada o abraçou e eles se foram...

Então, foi aí que o conheci, pois continuei sentada ali e quando todos se foram ele começou a conversar comigo, tinha a mesma voz do rapaz e me explicou mil e uma coisas sobre o mundo, e me pediu um favor. O rapaz apesar de ter dado vida a ele, deixou toda sua amargura ali. Explicou que se eu tirasse a amargura dele, tiraria também a do rapaz e de mais um monte de pessoas que deixam de fazer as coisas que querem por causa das regras impostas pelos donos do mundo...

- E o que você tinha de fazer?

- Ele me pediu que nadasse ali na "piscina" do Masp e se podia me dedicar a fazer coisas que as pessoas tem medo de fazer. Aí eu disse que sim, e todos os dias faço alguma coisa diferente, mas ainda não consegui atender o pedido principal dele.

-Qual?

- Todas as noites, quando as pessoas saírem de seus escritórios, pará-las e dividir minha felicidade contando as coisas que faço para ser feliz, pra ver se mudam um pouco suas atitudes, mas sempre que chego perto fecham os vidros...