É APANHANDO QUE SE APRENDE?

É APANHANDO QUE SE APRENDE?

Já deveriam ser quase nove horas da noite e lá estava eu, ajoelhada sobre grãos crus de feijão e milho, na cozinha de casa, chorando e pedindo a Deus que meu pai viesse logo pra me tirar daquele castigo.

Minha mãe era Tabeliã de Notas e o seu cartório funcionava num cômodo da nossa casa de residência. Como, naquela época, o movimento era pequeno, pois a cidade também era pequena, ela conseguia dar conta de lavar, cozinhar e cuidar dos sete filhos que tinha, além de lavrar escrituras e procurações no cartório. Às vezes , quando as condições financeiras permitiam, ela contratava uma ajudante para os trabalhos domésticos.

Meu pai era um homem trabalhador, porém, grosseiro. Pouco estudo, caminhoneiro, gostava de beber e farrear com os amigos. Conduzia os filhos “na ponta do chicote”. Não batia sempre, nem por qualquer motivo, mas castigava por qualquer falha que tivéssemos. Lá em casa era assim, “escreveu, não leu, o pau comeu!”. Eu mesma, quantas vezes fui obrigada a dar o meu colo de criança para que ele deitasse ali a sua cabeça e tirasse o seu costumeiro cochilo, enquanto lhe fazia cafuné... E não podia reclamar! As perninhas adormeciam, a bexiga ficava a ponto de explodir, mas tinha que esperar que ele acordasse, para poder ser liberada. Dentre as minhas irmãs, eu era a mais “solicitada” para essa tarefa. Somos quatro, a mais velha, Lurdinha, era a princesinha da casa: branquinha, bonitinha, quietinha, tudo ”inha”. Essa se safava sempre. As outras duas eram bem mais novas, então, sobrava pra quem? Cauzinha aqui!

Pois bem, Num desses dias em que o meu pai havia chegado de viagem e a minha avó paterna tinha vindo passar uma temporada conosco, calhou da minha mãe ter recebido uma quantia grande em dinheiro no cartório, deixada por um cidadão para pagar uma promissória sua que estava para ser protestada. Como a agência bancária já havia encerrado o seu expediente, e o devedor morava em outra cidade, pediu à Tabeliã que recebesse e quitasse essa dívida por ele.

À noitinha, após o jantar, enquanto meus irmãos saíram a brincar na rua com as crianças vizinhas, eu, muito apegada à minha avó, fiquei ali, pertinho dela, ouvindo-a conversar com os meus pais. Num dado momento, ouvi quando a minha mãe disse: Amanhã, preciso ir ao banco cedo, recebi um dinheiro no cartório e não é pouco, não. Meu pai perguntou a quantia e se ela havia contado todas as notas para ver se realmente correspondia ao valor recebido. Lembro-me bem de ver a minha mãe trazendo aqueles maços de cédulas amarrados com borracha e depositando em cima da mesa. Procederam, então, à contagem, para conferência. E eu ali, deslumbrada! Nunca havia visto tanto dinheiro junto... Num dado momento, meu pai disse: Está tudo certo, e, num tom de brincadeira, jogou as cédulas para o alto e falou sorrindo: - Chuva de dinheiro! Estamos ricos! Chuva, chuva! As cédulas flutuavam por toda a sala. Eu comecei a pular e a agarrar uma por uma. Todos nós começamos a juntá-las de novo.

- Vamos guardar esse dinheiro, gente. Acabou a brincadeira. Maria do Carmo, coloque na mesa as que você for pegando.

Num dado momento, impensadamente, apanhei uma cédula sem ao menos olhar o valor dela, e coloquei-a dentro da calçola (era calçola mesmo!). Eram tantas, que achei que uma só não iria fazer falta. Continuei a ajudar com as outras e, disfarçadamente fui ao quarto onde dormíamos, todos os irmãos embolados (quarto pequeno), abri a mala e guardei o apanhado bem lá no fundo, sob as roupas. Voltei para a sala como se nada tivesse acontecido. Comecei a amarelar quando vi meu pai recontando o dinheiro. Recontando? Meu Deus! E agora? As minhas pernas começaram a tremer e eu fui chegando cada vez mais perto da minha avó, como que esperando a sua proteção.

- Está faltando uma nota de quinhentos cruzeiros. Vamos, procurem, deve estar embaixo de alguma coisa aí...

Fiquei paralisada, enquanto painho e mãínha mergulhavam sob a mesa, já nervosos, procurando a nota que eu, num impulso, havia subtraído, Tive vontade de contar a verdade, mas o medo do castigo que eu sabia que iria sofrer me impedia. Já nervosos, meus pais se levantaram do chão e, então, percebi o olhar que a minha mãe me dirigiu e a leitura que fiz naquele instante foi: “ Eu sei que foi você quem pegou. Vamos, diga logo a verdade!” Saí, pé-ante-pé, fui ao quarto, peguei a nota que tinha escondido e voltei para a sala. Criei coragem, estendi a mão sobre a mesa e disse: - Eu tenho esses quinhentos contos que achei, toma, pode botar no lugar da nota que sumiu.

Quando terminei de falar, ao ver os olhares atônitos voltados para mim, olhares que expressavam a certeza de que eu estava mentindo, percebi que não teria como fugir do castigo. E seria pior, porque além de ter roubado, não confessara, pelo contrário, inventara uma história absurda.

-Maria do Carmo, que conversa é essa? Onde foi que você achou esse dinheiro?

- Achei hoje “de tarde”, tava embaixo do jeep de Seu Nego.

Seu Nego era um vizinho muito querido por todos, e, em especial, pela criançada da nossa rua. Ele tinha uma oficina – era ferreiro – e um jeep antigo, a sensação da turma. Todo mundo queria andar no carro de Seu Nego. Quantas vezes a gente não passeava pelas ruas da cidade pendurados naquele automóvel, achando até que estava fazendo inveja às outras crianças... Pois, quando me perguntaram onde havia achado os quinhentos contos, a única resposta que me veio à cabeça foi aquela.

- Dete, vai chamar Paulinho. Diz a ele que venha aqui, agora.

Paulinho, meu irmão mais velho, veio rapidamente atender àquela intimação. Ah, ele que não viesse...

-Vá à casa de Seu Nego e pergunte a ele se o Jeep saiu hoje da garagem.

Ás vezes, o carro dormia na porta de casa mesmo. Naquela época, havia poucos automóveis na cidade e não se ouvia falar em roubo de carros. Outras vezes, o proprietário o guardava no quintal, entrando pelos fundos. Lá vinha Paulinho, soltando os bofes pela boca e disse aquilo que eu tinha esperança de não ouvir: “ Paínho, Seu Nego disse que tem três dias que não tira o carro da garagem. Que tá sem tempo de consertar umas coisas nele”.

- Muito bem. Dete, me traga aqui uma vasilha com milho e feijão, crus! Cau, vou lhe dar uma lição que você vai aprender para o resto da sua vida! Nunca mais você vai pegar nada escondido, nada que seja dos outros! Porque isso é roubar, e filho meu não vai ser criado pra virar bandido, não!

Vi a minha mãe se dirigir à cozinha, nervosa, quase chorando. Triste pela má ação que eu tinha cometido e assustada com o que estaria por vir. Vovó Maria se levantou, pegou no braço do meu pai - que àquela altura já estava com o cinto na mão para me dar uma surra - e pediu a ele que não exagerasse. Disse que eu era ainda uma criança e que tivesse cuidado para não me machucar. Sabemos como são as mães, não é mesmo?

Fui arrastada pelo braço até a cozinha e comecei a apanhar. Foram tantas “cintadas” pelas pernas, pelos braços... Meu choro se confundia com os pedidos da minha avó e da minha mãe para que ele parasse, que já chegava, já estava passando dos limites. Caroços de milho e feijão foram espalhados pelo chão, sobre os quais fui obrigada a ajoelhar “para pensar naquilo que eu tinha feito e me arrepender”. Os minutos iam passando e, aos poucos, as minhas pernas deixavam de doer e iam ficando dormentes. A dor maior era a da alma, dor de culpa. Pessoas que fazem coisas erradas, quando morrem, vão direto pro inferno. Vão ser cutucadas com o “gancho” do diabo. Essa isso que a escola, o catecismo da igreja, enfim, as pessoas grandes nos diziam.

De cabeça baixa, ajoelhada e chorando, não tinha coragem de olhar para a minha avozinha e para a minha mãe, só ouvia os seus pedidos para que me tirasse dali logo, que eu já tinha aprendido a lição, e pelo tom das suas vozes eu pude perceber que elas estavam sentindo a minha dor. As mães sentem as dores dos filhos!

Mais alguns minutos se passaram, não tenho nem idéia de quantos, só sei que estava na hora de as crianças entrarem para suas casas. Hora de dormir, pois ouvi o “converseiro” e a alegria dos meus irmãos, que nada presenciaram, nem de nada souberam. Só me lembro que fui mandada a ir ao banheiro e depois para o quarto. Agora, o meu choro era derramado para dentro de mim mesma.

- Os dias foram passando e as minhas noites eram angustiadas, sonhava com o inferno, figuras sombrias se aproximavam de mim, na cama, e sob os cobertores eu tremia de medo e rezava.

Numa dessas noites, estava eu dormindo de valete com meu irmão, Paulinho, numa mesma cama, eu com oito, ele com quatorze anos (corria pra a cama dele, por causa dos pesadelos) e acordei com uma bola enorme de fogo vindo na minha direção e dentro dela uma figura horrenda com os braços abertos, avançando como se fosse me abraçar. Soltei um grito e me agarrei aos pés do meu irmão com toda a força, pedindo proteção. Ele se assustou, mas logo percebeu que eu estava tremendo. Abraçou-me e me acalmou. Continuei com os olhos fechados, mas aquela imagem teimava em aparecer para mim. Pensei: “É o diabo!” Minha mãe ouviu os meus gritos e correu a me acudir. Abraçou-me, disse que havia sido um sonho ruim, pedi que ela rezasse e, aos poucos, ouvindo a oração do Pai Nosso, fui adormecendo.

Hoje, acho que aquela oração do Pai Nosso dita por mãínha, num momento tão pavoroso da minha vida, foi como um bálsamo, como um banho que lavou o meu grande pecado e me libertou das noites de agonia, da culpa e do medo.

Aprendi, a duras penas, que não se deve pegar nada dos outros sem pedir. Que se subtrairmos qualquer coisa, por menor ou menos valorizada que seja, estaremos praticando o mesmo crime: roubo. Mas, a maior lição não foi a surra, não foi o castigo brutal de ficar ajoelhada sobre grãos até ferir os joelhos. O que sei é que não se deve passar para as crianças a imagem de um Deus vingativo, de um Deus monstruoso que joga os seus filhos no inferno quando eles, por serem humanos e, portanto, passíveis de erros, cometem os seus pecados.

O Deus que conheci mais tarde e é hoje o meu Deus, é Aquele que perdoa, que acalenta, que ensina, que ampara. O Deus a quem sirvo é fiel, é tremendo, é poderoso. O amor de Deus não machuca, não oprime, não ameaça.

Não culpo meu pai pela forma como nos educou, até porque, apesar de tudo, crescemos e nos tornamos pessoas de bem. Honestos, trabalhadores, respeitadores. Foi assim que ele aprendeu, também a duras penas. A sua educação foi na base da “correia” e não teve oportunidade de freqüentar a escola, como nós.

Ao escrever esse texto, revolvi o baú das minhas lembranças e revivi tudo de novo. Os meus olhos teimam em lagrimar. E choro. Há em mim, nesse momento, um misto de dor e de alegria. Dor por ter essa marca na alma e por saber que meu pai e milhares de crianças por esse mundo a fora passaram e vão passar pelo que passei. E alegria por viver com a consciência tranqüila diante de Deus e dos homens. Cometo meus pecados, sim, como todo ser humano. Mas nada que tire o sono, porque sei que nenhum mal estou fazendo a mim nem a mais ninguém.

No meu caso, o fim justificou os meios. No meu caso! Agradeço a meu Pai.