APERTEM OS CINTOS, VAMOS BALANÇAR!

-Cau, coloque o cinto de segurança! Vamos balançar um pouco, está me ouvindo?

-Anh? O quê?

O gordo, sentado à minha frente, olhava para trás e me fazia sinais. Parecia gritar... Ah! Lembrei-me. Estava com os ouvidos tapados, por isso não conseguia ouvir direito o que ele dizia.

Tudo começou no dia em que viajei pela primeira vez de avião. Havia ido à Salvador com o então prefeito da minha cidade, a fim de colher algumas assinaturas em documentos do interesse do município. Como trabalhava no Cartório de Notas com minha mãe, que era Tabeliã, coube a mim essa tarefa.

Na ida, foi tudo bem, às mil maravilhas. Carro particular, confortável, o próprio prefeito dirigia quase voando (que homem do pé quente!) e lá íamos nós: ele, a primeira dama e eu, sentada no banco traseiro. A conversa girava em torno da política local, assunto corriqueiro na cidade.

Ao chegarmos à capital nos dirigimos ao local onde seriam colhidas as assinaturas e pronto, tarefa cumprida. Naquela noite, demorei a dormir. Após o jantar, o meu anfitrião perguntou se eu já havia viajado em avião. Após a minha negativa, ele sorriu e disse: - Pois amanhã será a sua primeira vez. Vamos voltar para Morro do Chapéu voando - Nem acreditei, achei que fosse brincadeira, pois raramente víamos um avião cruzando o céu da nossa pequena cidade, quanto mais pousando ali... Prá falar a verdade, eu ainda não havia visto de perto nenhuma aeronave. Quando, raramente, pousava uma no campo de viação, com certeza trazendo algum político importante em época de eleição, muita gente corria para ver, mas só quem tinha carro podia ir até lá, uma vez que o campo de pouso ficava distante do centro.

Pois bem, ao ter a confirmação da bendita viagem pelos ares, senti um frio na espinha e fiquei a imaginar como seria... Um misto de medo e de vaidade me invadiu. Por um lado, medo de despencar lá de cima e por outro, vaidade por fazer algo que nenhum jovem da minha terra, pelo menos que eu soubesse, ainda tivesse feito e então, eu teria muito prá contar...

Acordei cedo, após uma noite de sono agitado. O dia estava lindo. Fiz as minhas orações, a minha higiene matinal e mal consegui engolir o café. Fiquei ainda mais apreensiva quando a esposa do prefeito disse que não voltaria conosco, naquele dia. Ainda assim, nos acompanhou ao aeroporto. Lá chegando, pude ver de perto alguns aviões grandes em terra e imaginei que seria num deles a nossa viagem. Despedimos-nos da primeira dama e nos dirigimos ao embarque. Lá estavam o diretor geral do DERBA, o coordenador e o piloto, os quais me foram apresentados.

Tratava-se de um avião pequeno, bimotor, com seis lugares. O piloto tomou o seu lugar e em seguida o diretor gentilmente disse: - A senhorita primeiro... – E fez um gesto para que eu entrasse. Fiquei tão afobada, tão nervosa, que não enxerguei o degrau (uma espécie de pedal) no qual eu teria que pisar para facilitar o embarque. Estirei a perna o mais que pude e fiz um esforço tremendo para alcançar a entrada, imaginem... Foi quando ele educadamente falou: - Pise aqui, senhorita, será mais fácil - Que gafe! Pensei no constrangimento do prefeito ante aquela situação e quando dei por mim, já tinha dito: “ah, desculpe, é que estou sem os óculos” e emboquei rapidamente, indo parar lá no fundo. Tomei assento, quase que me escondendo, coloquei no colo o livrão do cartório que o piloto já havia depositado onde eu iria viajar e respirei fundo. Só então me dei conta de que estava o tempo todo com os óculos na cara.

Ficamos assim distribuídos: na frente, o piloto e o coordenador; nos bancos do meio, o prefeito e o diretor e nos dois últimos bancos, o livro e eu. Hora de levantar vôo. Comecei a orar. Fechei os olhos e senti que estávamos já subindo. A pressão do ar afetou os meus ouvidos que davam cada pipoco! Meus Deus, não vou agüentar, pensei. Precisava fazer alguma coisa, estava ficando insuportável o desconforto. A cabeça começou a doer. Num rompante, peguei a flanela do estojo dos óculos, rasguei em dois pedaços e enfiei um em cada ouvido.

Assim, sentada no banco de trás, com os ouvidos tapados, o livrão do lado e as mãos cruzadas e apertadas, estiquei a cabeça para a janela no intuito de observar “o mundo” lá de cima. Gostei do que vi. O mar, as árvores, as casas, tudo ficando cada vez menor. Estava tão absorta na apreciação que quando me virei, vi o prefeito olhando prá trás e fazendo gestos para mim. Eu não estava entendo nada. - Ele deve estar perguntando se estou bem - imaginei. Fiz um gesto de positivo com a mão, ele sorriu e virou-se para frente.

Ai, meu Deus! O que é isso? Tanto solavanco que parecia estarmos num carro velho... Olhei para fora e vi o mundo escurecendo. Chuva! Vento! O avião começou a sacudir e fui ficando apavorada... Inclinei-me para frente querendo ver a reação dos outros passageiros, quando notei que o prefeito estava falando comigo. Ele falava, falava e eu não conseguia escutar. Lembrei-me da flanela nos ouvidos. Retirei-as e então entendi que ele estava pedindo prá eu apertar o cinto de segurança. Novamente fiz o sinal de positivo e ele se tranqüilizou.

Essa foi a pior parte. Procurei o cinco e tentei colocar. Tratava-se daqueles cintos antigos (década de 70), com as fivelas enormes e eu não sabia como acoplar uma parte na outra. E o avião sacudindo. Eu tentei de todo jeito e quando vi que não ia conseguir e que os solavancos continuavam, qual foi a luminosa idéia que tive? Amarrei! Isso mesmo! Amarrei em torno de mim e fiquei ali, sentada, ereta, quase sem poder respirar, apelando para todos os santos, querendo chegar viva em casa. Toda hora que o meu amigo prefeito voltava-se e olhava para mim, eu dava um sorriso amarelo e fazia o sinal de que tudo estava bem.

Séculos se passaram! Cada segundo parecia um ano. Eu já antevia a cidade toda lamentando a nossa queda. “Coitada de mim, tão jovem ainda...”

Finalmente ouvi o piloto dizer em voz alta (nessas alturas, eu já havia tirado de vez a flanela dos ouvidos) que estávamos chegando. E agora? Dá-se início a outro drama: conseguir desfazer o nó que havia dado no cinto de segurança. E tinha que fazer isso logo, antes da aterrissagem... Que labuta! Pelejava daqui, pelejava dalí e nada! Minhas unhas começaram a quebrar, a sangrar e o coração disparou... Precisava me soltar antes que eles vissem a minha situação. Aquelas fivelas enormes, aqueles trambolhos machucavam as minhas mãos e eu fazendo um esforço danado prá não chorar. Consegui! Graças a Deus, consegui! Ufa!

Como boa atriz amadora que julgo ser, cuidei de limpar os dedos, de apanhar o livro e abrir o mais lindo sorriso que podia dar! Desci pisando no degrau, com toda a elegância de que fui capaz, cumprimentei os outros passageiros e agradeci ao Pai Todo Poderoso por ter chegado viva e inteira. Quando o amigo prefeito se aproximou de mim, já em terra firme e perguntou se havia gostado da viagem, com toda a diplomacia do mundo, respondi: – Adorei! Foi maravilhosa! Muito obrigada, essa viagem será inesquecível.

E tem como esquecer?