UM DIA FELIZ

Comendo uma paçoca na praça ele avistou umas pombas. Pensou logo no jantar. Bastava um arroz e umas rodelas de tomate. Quem sabe uma cebola ou duas. Uma em rodelas para acompanhar o tomate como salada e a outra picada para a farofa do recheio. Isso! Assada seria muito melhor. Recheada com farofa, cebola e bacon picadinhos... Deu água na boca. Mas pombo não é rato com asas, sei não. Será que pega doença? Tem um trocado ai moço? Eu preciso comprar remédio pra minha filha... Sempre é melhor dizer filha que mãe ou mulher. Criança desperta compaixão. As pessoas ficam com dó. Dependendo da cara do “freguês” é melhor dizer que é pra passagem. Todo tipo de passagem. Uberaba, Uberlândia, Franca, Piqueri, Sacomã ou metrô. Qualquer coisa serve. Outro dia estava sentado perto de um viaduto e foi pedir esmola a um cara de mochila e este lhe deu meio pacote de bolacha recheada. Nunca tinha comido uma. Vomitou... Maldita bolacha: se quisesse coisa doce, tinha pedido pinga com groselha. Passou por uma feira umas duas horas antes (ou foi ontem?). Conseguiu uma maçã e duas bananas. Alimentado estava, mas pombo recheado com farofa... não carecia nem o arroz. Um pãozinho talvez. Se voltasse lá na feira talvez rolava o tomate e a cebola na xepa. Quem sabe. Mas aonde era a feira? Porra de pinga. Foda-se o tomate. Tem vezes que não lembra nem aonde é o abrigo da Prefeitura. Outro dia viu o Kassab. Foi pedir dinheiro, emprego, um chiclete ou um cigarro e ganhou dois safanões de um segurança. Idiota! Vai ver ganha dois mínimos. No semáforo ganho mais. Idiota! Duas vezes imbecil. Ôpa: uma bituca acesa, quase meio cigarro. Ganhei o dia. Quem sabe me dão um cobertor. Preciso de um cobertor. Bom mesmo era ter uma mochila. Quem sabe aonde é a sopa espírita? Aquela da Kombi... Ganha até pão. Maldita Pomba, não consigo pegar. De duas uma, ou como a pomba ou vou preso por crime ambiental e lá tem três refeições por dia. Mas a gente que não é bandido, eles põe na rua logo. Injusto isso. Aonde foi que eu perdi minha mulher? Vou ler o jornal na banca, catar umas latas. Preciso de uma mochila. Um gole. Dois, melhor dois. Tem um troco ai? Uma moeda? Tem um cigarro? Porra! Um só! Nossa: dez reais! Pisou em cima e olhou em volta. Agachou-se como quem examina o tornozelo. Sempre olhando em volta. Puta que Pariu! Hoje janto! Comprou duas garrafas de pinga. Tomou a primeira como quem tem sede. A garoa transformou o asfalto e as coisas. Tudo passou a brilhar. A poeira sumiu e as luzes da cidade estavam se acendendo. De um lado um colar de pérolas, do outro o de rubis. A dança das cores. As cores em riscos de luz. Os riscos de brilhos, a adolescência em brilhos. Bons tempos. Tempos de LSD farto, sem anfetamina. Eu tinha emprego? Sei lá... O porre o levou pra debaixo do viaduto. Essa porra parece que vai cair. Já ouvi dizer que a tarde caia feito viaduto. A assistente social lhe deu comida. A Kombi, o albergue, a cama. Lembrou-se das aulinhas de inglês, da loira cacheada, da gorda dadivosa. Pirulito Kibom. A noite é uma criança.

Ocirema Solrac
Enviado por Ocirema Solrac em 31/03/2012
Reeditado em 17/02/2024
Código do texto: T3586330
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