Conto - Elise, Meu anjo da guarda

Elise, o Anjo da Guarda

Conheci Elise no final da adolescência, mas ela já era uma mulher bem feita, de corpo forte, como as pessoas que tem ascendência lusitana, embora seu sobrenome brasileiro, comum, não comunicasse a origem de sua família, que ela mesma não conhecia por ter vivido jogada na vida.

Confesso que quando a vi chegar no asilo, pensei que fosse mais uma destas pessoas que vem limpar a consciência dando carinhos superficiais aos velhos esquecidos que habitavam o lugar. Você, caro leitor, pode pensar que estou sendo amargo, mas na verdade, quando estamos carentes notamos a diferença entre o verdadeiro sentimento e o que nos é dirigido apenas por obrigação ou por falsa demonstração de fé.

Até aquele dia, eu já vivia 15 anos de solidão forçada dentro de asilos. A princípio, por insistir com a minha história, viviam me mandando de um para outro, até que tive um AVC, não perdi a consciência, mas ao perceber que ninguém me ajudaria mesmo, acabei aceitando ser apenas o velho e abandonado Rosevaldo da Silva, ex motorista particular, sem família e sem mais ninguém na vida.

O AVC tornou-me um preso agora em uma cadeira de rodas. Os fisioterapeutas bem que tentavam tirar-me dela, mas aos poucos fui me acostumando viver como um entrevado e a não reagir ao tratamento. Confesso que tinha horas que eu até tentava reagir, mas sem perspectiva, meu animo falhava. Não via sentido lutar se não encontrava quem pudesse me tirar do lugar onde vivia. Sabia apenas que estava em São Paulo por causa dos programas da Televisão e dos assuntos que as pessoas falavam quando de visita ao asilo.

Quando Elise chegou foi encaminhada a um senhor que vivia no mesmo andar que eu, mas a jovem que veio ficar comigo, não gostou de mim e pediu para trocar com alguém. Estranhei quando Elise aceitou trocar, O Sebastião era um velho manhoso, mas muito carinhoso e as pessoas gostavam dele, já eu resolvera não aceitar os farelos de amor que as pessoas nos ofereciam ali. No domingo seguinte Elise veio me ver e diferente da outra, não pediu para me chamar de pai.

Talvez seja necessário explicar isto melhor...

O pessoal da Instituição que Elise trabalhava tinha um Programa de Adoção de Idoso e os voluntários nos chamavam de pai e mãe, não importando que alguns tivessem a nossa própria idade.

Quis ser grosseiro com Elise, naquele dia que ela veio ser minha acompanhante. Mas acho que o Sebastião disse-lhe sobre minha vontade de ler e sobre o estado precário daquele ambiente que o povo denominava Biblioteca Vaz de Camões, que contava com míseros 100 livros e com uma multidão de revistas de fofoca antigas. Ela trouxe numa cesta uma quantidade enorme de livros, para que eu escolhesse alguns para ler. Bons livros, ótimos autores e ela desculpando-se por ter comprado os mesmos em um sebo, onde ela disse comprar os que ela lia.

Não consegui ser grosseiro com aquela jovem, de olhos preocupados, senti de pronto que ela usara seus parcos recursos para possibilitar uma leitura razoável para mim. Mostrei mais interesse do que desejaria, o que fez com que a jovem deixasse todos os livros que trouxera.

Confesso que passei horas agradáveis viajando pelos livros que recebi. Só na segunda visita foi que ela perguntou-me de qual forma gostaria de ser chamado e disse-me que meu nome – Rosevaldo – não combinava comigo. Ri esperançoso, mas disse-lhe que podia me chamar de qualquer coisa, que estava bom. Ela sorriu e disse-me que não gostava de chamar ninguém de pai, pois não gostava muito de lembrar de laços familiares tão próximos e disse de pronto que não saberia como agir com um pai ou mãe. Estranhei, mas não estava muito a fim de de conhecer a história de ninguém. Neste dia ela não me trouxe livros, contrabandeou chocolates e disse-me que se eu quisesse poderia partilhar com Sebastião, pois fora ele quem lhe dissera que eu gozava de boa saúde e que podia comer doces. Quase disse-lhe que fosse lá dar bombons ao velho linguarudo, mas era trufas caseiras, cheirosas e com uma aparência tão bonita que resmunguei uma resposta qualquer e continuei lendo meu livro.

De repente meu quarto iluminou-se, os jovens que vinham com Elise, trouxeram-me uma estante feita com duas escadas de armar. Para suprir os espaços que faltava em livros, Elise trouxe vasos feito em casa, com flores de crochê que pareciam de verdade e era perfumadas. Ela providenciou uma luminária para que eu pudesse ler mesmo na cama.

Durante meses tentei ignorar as atitudes desta jovem, mesmo agradecido pelos seus carinhos e aos poucos ela foi entrando em meu coração. Mas agosto estava chegando e mais uma vez o asilo preparava a Festa do Dia dos Pais, arrecadando com os visitantes e voluntários doação para que tivéssemos uma festa.

Nesta época, de tanta insistência de Elise, eu já estava tendo progressos com a Fisioterapia e já não usava mais a cadeira, andando com uma bengala que ela me trouxe. Ela mandou desenhar na bengala um leão e uma ovelha. Disse-me que era o meu verdadeiro eu escondido.

Dia dos pais. Pela manhã senti-me triste e estava grato por saber que os voluntários nõa iriam aparecer por ali, pois tinha que festejar com suas famílias. Era assim todos os anos, dia dos pais, das mães, Natal e Ano Novo tínhamos festa, mas só os funcionários de plantão e alguns filhos de verdade apareciam para comemorar estas datas.

Estava choroso pela manhã e depois de banhar-me sozinho, encostei-me no sofá perto da estante e chorei. Nestes dias sinto falta de meus filhos, mesmo sabendo que de alguma forma eu esteja morto para eles.

Para piorar meu desconforto Elise chegou e veio cedo, trouxe flores, um livro novo de José Saramago que eu dissera querer ler, depois que ela disse que lera na Biblioteca do bairro dela. E alguns outros livros para completar minha estante que agora estava bem cheia. Ela conseguirá alguns livros de doação em algum lugar e me trouxera todos, sem ler. Líamos todos os domingos. Ali, naquele domingo triste, Elise me encontrou aos prantos. Ela me abraçou e não consegui me afastar dela. Lembrei-me de minha falecida esposa e de seu carinho silencioso e solucei feito criança no ombro da jovem, que me embalava como se eu fosse criança.

Passado o desespero, ela levantou-se e pediu que eu me arrumasse, queria tirar uma foto para guardar. Lavei meu rosto cansado e quando voltei encontrei-a segurando em suas mãos delicadas o camafeu onde tinha a foto de minha esposa e de meus filhos. Ela me perguntou quem eram e eu contei a verdade a ela.

Ela me ouviu atenta, balançando a cabeça e também chorou. Um choro silencioso, de lágrimas grossas e sentidas tão parecido com sua sinceridade. As poucas pessoas que ouvira antes minha história não acreditaram em mim, mas ela ouviu calada, soluçando entristecida. Tudo o que disse ao final foi: “A gente procura a vida inteira por uma família e quem tem despreza”. Deu-me um beijo carinhoso no rosto e deu o assunto por encerrado.

Confesso que contar-lhe tudo reabriu as feridas, mas o seu carinho sincero acalmou-me a alma. Depois do almoço e das palestras, ela disse-me que precisava ir, mas que voltaria e que era para eu caprichar na fisioterapia nos próximos dias, pois ela queria me ver melhor.

Esperei o domingo animado, mas neste dia Elise não veio. A amiga dela, que me rejeitara a princípio e que não aparecia com frequência veio neste domingo e avisou-me que Elise mandará algumas frutas para mim, que ela entregaria logo e um novo livro.

Os dias passaram e com os finais de semana seguinte Elise não tocara no nome de minha família e eu nada dissera mais, embora saber que ela conhecia minha história me trouxesse uma paz maravilhosa.

Em uma quinta-feira Elise chegou ao asilo com um senhor alto, negro, bem apessoado que com deferência apresentou-se a mim e devidamente informado de que era um delegado da Polícia Civil – me mostrou documentos e o asilo, que nada sabia de minha conversa com Elise verificara a veracidade da identidade do cidadão.

Educado, pediu-me que contasse minha história para ele.

Iniciei sem muita esperança, mas me arrisquei. Contei-lhe desde o início.

Em 1983, no dia que completara 5 anos de minha viuvez, sai para dar uma volta de carro. Era o primeiro ano que meus filhos não estariam comigo e minha filha, com seu esposo interesseiro deixavam-me nervoso exigindo que eu desse a eles apoio em uma viagem pelo mundo. Pedi a Rosevaldo, meu amigo e motorista que me deixasse guiar o carro, queria estar ocupado e não pensar em Carolina, minha esposa falecida e que me fazia tanta falta. Sei que Rosevaldo também sentia falta da patroa. Sua família trabalhava com a nossa desde sua infância e ele habituara-se ver minha esposa como amiga também, já que vieram juntos na fazenda dos pais de Carolina. Conversávamos muito sobre ela. Neste dia, um domingo, São Paulo estava vazia, sem o trânsito do centro e resolvemos ir dar umas voltas na Avenida Angélica, onde passeávamos na nossa adolescência. Não sei como de fato aconteceu, mas um caminhão desgovernado apareceu como por encanto e pegou o carro de chofre, do lado do passageiro. Foi tudo o que vi. A aproximação e mais nada, pois tudo escureceu.

Acordei meses depois em um asilo, o primeiro que fiquei. Engessado e sem movimento, perguntei por Rosevaldo e alguém sorrindo, disse-me que este era meu nome. Dormi cansado e depois disto, ao despertar tentei contar a verdade, mas era sedado e as pessoas que transitavam por perto de mim logo ficaram sabendo que eu era uma pessoa com confusão mental devido ao acidente.

Por meses tentei contar minha história, mas todos criam no tal diagnóstico de confusão mental. E era sempre removido de um asilo para outro. Quando já conseguia andar, estava em um asilo tão estranho, cheio de trancas, sentia-me preso. Assim, deixei de contar quem de fato era.

Ser Jofre Carlos Lins de Vasconcelo Albuquerque não era mais prioridade, agora tinha que lutar para continuar vivo, de um tempo para outro percebi que manter-me incógnito era também desejo dos que cuidavam de mim. Sou inteligente o suficiente para perceber que estava envolvido em um jogo sujo, pois soube logo depois da primeira vez que tentei contar minha história, que eu, como passageiro do carro fui tido como morto, sendo reconhecido por minha filha querida e seu esposo. Soube então que estava preso e não asilado. Preso a uma identidade até querida, pois amava meu amigo e motorista Rosevaldo, e ao perdê-lo, perdi também a minha vida.

O delegado ouviu-me como profissional, fazendo perguntas sobre minha história e montando sei próprio ponto de vista. Contei-lhe que ficara com o relicário de minha família, pois dera ao meu amigo anos antes, quando um de meus filhos fora trabalhar na Itália. Disse-lhe que seria sempre prova de que éramos mais família que patrão e empregado. Devia estar nas coisas de Rosevaldo, que foi levado para o primeiro asilo em que fui internado. Achei por acaso e tomei de volta. Já que tomava-lhe a identidade, porque não ficar também com seu bem precioso.

Minha única menina, aquela garotinha linda de olhos sorridente, sempre cercada por seus 3 irmãos, crescera e transformara-se neste monstro capaz de internar o próprio pai como um dos empregados – e herdeiros – em um asilo e abandoná-lo a própria sorte!

Doutor Tigre Galhardo ouviu-me com atenção e pediu-me licença. Saiu sem falar nada com Elise ou comigo que me fizesse entender sua opinião, disse apenas que haveria Justiça. Horas depois, devidamente alimentado por Elise que insistia que eu comece algo, esperávamos uma posição do homem da Lei.

Elise recebeu um telefonema por volta das 3 horas. Aquele celular fez ela sorrir e logo depois ela ligou para alguém, solicitando um número de fax. Saiu de meu quarto e foi ao escritório e logo depois voltou satisfeita. Naquele dia ela dormiu no asilo, não sei em que lugar, pois ao colocar-me na cama, saiu e voltou pela manhã. Quando voltou trazia consigo uma roupa desconhecida para mim, um terno em bom estado e uma camisa, esta peça nova, simples, mas elegante. Disse-me que era para eu ficar bonito para receber o Delegado. Doutor Galhardo chegou sorridente, tratando-me ainda com respeito, mas parecia um outro homem, mais leve, abraçava Elise com um carinho, encantado e foi ai que ouvi algo estranho e bonito sobre ela.

“Senhor Jofre, se nossa querida menina não tivesse esta mania danada de ouvir com atenção as histórias dos outros, para romantizá-las em seus contos, nós jamais nos conheceria. Devo muito a esta menina, senhor Jofre. Por sua atenção fui salvo em um processo administrativo e em pagamento por este favor, acabo aqui ouvindo sua história também. Posso garantir meu caro senhor” - dizia o delegado caloroso - “que ambos fomos salvos por esta poetisa”.

Alguns minutos depois chegou um jovem, que se apresentou como advogado de meu filho mais velho. Reconheci de pronto que só poderia ser filho de Rui Corsário, meu grande amigo e

ex-advogado. Ao reconhecer-me o jovem sorriu satisfeito, dizendo-me que seu pai ficaria satisfeito de encontrar seu parceiro de xadrez, segundo ele seu pai sentira muita saudade de ganhar de mim. Não desfiz a importância do momento, esclarecendo ao jovem que isto acontecera poucas vezes. Sorri reconhecendo que minha vida retornava. Meu filho, chegou naquela mesma noite. E por dias a fio, ao sair daquele asilo, não pude falar com Elise. Minha filha esta fora do país até hoje. Ao descobrirem seu crime, ela conseguiu desaparecer e não estou interessado em encontrá-la, mas meus meninos, retornaram todos, felizes por me terem vivo. Revi meus dois netos, já homens e conheci os outros. Entrei para o anonimato como um senhor jovem e sai de lá bisavô.

Sou muito feliz com minha vida. Ainda jogo xadrez com meu velho amigo Corsário, que quase sempre perde, viajo com meus netos com certa frequência. Retornei aos meus trabalhos especias, sou hoje um grande defensor do Serviço Social sério, pois conheci os erros e acertos vivendo dentro dele, tenho uma vida ativa para um octogenário, sou saudável e hoje sou patrocinador do último asilo em que vivi, que é um Recanto bem organizado onde vivem a maioria dos meus amigos de então. Sebastião eu trouxe para morar conosco, mas ele nos deixou em definitivo 3 anos depois.

Agora a jovem Elise deve ter hoje seus 40 e poucos anos e nunca mais ouvi falar dela. Procuro-a até hoje. Sei que ela tinha planos, queria fazer Psicologia ou Direito, mas me dissera uma vez que o que ganhava como doméstica era suficiente apenas para suas despesas pessoais. Sei que prestava servi voluntário a uma Entidade em seu bairro, mas apesar de procurar muito, até hoje ninguém a encontrou para mim.

Nunca consegui dizer ao menos muito obrigada aquela guerreira. Escrevo minha história aqui esperando que alguém a reconheça e saiba onde está meu anjo da guarda.

São Paulo, 01 de Setembro de 2012.

Jofre Carlos Lins de Vasconcelo Albuquerque

Elise

Elisabeth Lorena Alves
Enviado por Elisabeth Lorena Alves em 01/09/2012
Reeditado em 06/03/2016
Código do texto: T3860229
Classificação de conteúdo: seguro
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