DEIXA PRA LÁ

Eu sou dotada de uma memória terrível... terrível no sentido de que eu me lembro de tudo ou quase tudo. Na minha mente ficam retida uma quantidade monstro de informações, que costumo usar nos momentos mais oportunos possíveis. Dificilmente algo me escapa: gestos, olhares, palavras, um toque. Tudo isto quer dizer alguma coisa e eu sempre uso a meu favor, sempre. Por isto que, quando o Guto serviu um copo de Coca Cola para a Adriana, todos os meus instintos ficaram em alerta e registrei aquele momento “inocente” na minha mente. Eu sabia que infelizmente teria que usar mais tarde.

Até que eu poderia ter esquecido aquilo. Afinal, um homem servir uma mulher de refrigerante, que mal tem? Tem, sim. Quando é o Guto, sempre existe uma enorme possibilidade da coisa ir muito além de uma gentileza. E a Adriana então? A maior rameira da cidade, conhecida por namorar dois ou três ao mesmo tempo. Conheço o Guto. Ele diz que me ama. Mas me ama do jeito dele que não é o jeito que eu gostaria que ele me amasse. E eu passei noites e noites acordada lembrando daquela cena, amaldiçoando a minha memória implacável, que me fazia rever aquele momento que eu flagrara e que me atormentava tanto.

Um dia, eu pressenti algo. O Guto chegou estranho em casa, uns míseros trinta minutos atrasado. Falou alguma coisa em entrega de um relatório que estava atrasado e se enfiou no chuveiro. Não me dei por satisfeita. Lembrei da Adriana e peguei o telefone. Liguei para a secretária do Guto e inventei alguma desculpa. Descobri que o cachorro tinha saído uma hora mais cedo aquele dia. Filho da mãe!

Enquanto ele cantarolava no banheiro, o infeliz, eu chafurdei no bolso das calças dele, no celular, na carteira. Não encontrei nada, absolutamente nada que o incriminasse. Mas eu sabia, minha memória e meu feeling não me deixavam em dúvida. O Guto me traiu com a Adriana. Teria sido a primeira vez?

O Guto saiu do banho e me encontrou com cara de perdida, parada no meio do quarto. Ele nem percebeu. Me dei conta, então, que o relógio dele não estava em cima da penteadeira, onde ele costumava deixar sempre que tomava banho. Então falei, sem pensar duas vezes:

- A Adriana ligou dizendo que o teu relógio ficou na bolsa dela.

Ele me olhou com uma cara de espanto. Perguntou, enrolado na toalha:

- Que Adriana?

- Aquela que você serviu uma Coca Cola na casa da minha mãe e passou algumas horas no motel. Lembrou? É esta mesma.

Não acreditei que eu tivesse falado daquele jeito. As palavras saíram em torrentes.

- Do que você está falando?

- Que você está de caso com a Adriana. Pronto, falei. E descobri também, que você saiu uma hora mais cedo do escritório e não trinta minutos depois. Pensa que eu sou o quê? Uma trouxa?

O Guto suspirou e disse, com uma enorme paciência:

- Em primeiro lugar, meu relógio está na estante da sala de estar. É só você ir até lá para conferir. Em segundo, eu saí mais cedo sim do escritório porque seu aniversário é depois de amanhã e eu queria ir comprar o seu presente. Satisfeita? Você conseguiu terminar com a minha surpresa.

Eu ainda não estava muito satisfeita, mas minhas convicções foram abaladas. Perguntei:

- Você comprou… comprou o quê? Onde está?

- Deixei no porta mala do carro para que você não o descobrisse.

Quis me matar. Aquele diálogo não era para estar acontecendo.

- Você acha que eu seria capaz de ter algum tipo de relacionamento com aquela mulher? Ora, por favor!

Fiquei muda. O Guto me estendeu a chave do carro e disse:

- Toma. Já que você estragou tudo, vá até o carro e pegue o seu presente.

E eu fui mesmo, porque eu precisava conferir se era verdade ou não. Não levou nem dois minutos e eu voltei, com uma bela aliança de brilhantes adornando meu dedo anular. Encontrei o Guto colocando as roupas dele numa sacola de viagem, ainda pelado.

- Ué! Aonde você vai?

- Vou para a casa da minha mãe até você aprender a confiar em mim.

Foi assim que quase perdi o meu marido por causa de uma lembrança inútil. Ele voltou uma semana depois, mais calmo e eu totalmente dócil. Resolvi esquecer tudo e mais um pouco. Deixa pra lá.

Patrícia da Fonseca
Enviado por Patrícia da Fonseca em 25/03/2007
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