Vontade de crescer

Papai do céu, aprendi na escola hoje, algo que a professora diz que os adultos, exceto ela, não sabem.

Ela trancou a porta da sala e abriu o armário, de onde tirou um saco azul cor do céu, disse que era a cor dos sonhos.

Nesse saco continham coisas de adulto, ela queria que cada um pegasse uma coisa que tivesse a ver com o que nós queríamos ser quando crescer.

Éramos 23 ao todo na sala, cada um pegou uma coisa...

A Maria, minha amiga, que sempre andava de mãos dadas comigo no recreio, escolheu uma boneca num carrinho de bebê.

Eu escolhi uma roupa de médico, mamãe disse que o sonho dela é me ver assim um dia...

O Zeca, meu amigo, escolheu um megafone disse que queria ser diretor de cinema...

O Maurinho, que sempre que tinha aula de música nem sequer piscava, escolheu uma guitarra de brinquedo...

O Duda, que não desgrudava do Maurinho, escolheu uma bateria de brinquedo e foram os dois para um canto da sala brincar...

A Mariana, amiga de Maria, escolheu o kit de cozinha e disse que faria doces pra todo mundo...

E assim, todos escolheram seus pertences, meus outros amigos viraram engenheiros de capacete amarelo, Dentistas, Jogadores de futebol e por aí foi...

Papai do céu, resolvemos perguntar qual era o segredo da professora; ela abriu uma caixinha rosa e com a mão recolheu um pó que tinha lá dentro e assoprou em nós pedindo que todos fechassem os olhos...

Daquele dia em diante Deus Pai, minha vida nunca mais foi a mesma...

Alguns filmes já devem ter expressado algo parecido, mas nenhum deles, soube realmente explicar o que passei...

Digo isto, porque não levei um susto quando acordei para trabalhar, e me deparei com minha esposa ao lado, pois naquela noite eu havia sonhado com todos os outros anos da minha nova vida.

A professora, depois de assoprar o pó, havia pedido que todos deitassem no chão permanecendo com os olhos fechados, abriu um livro desses tipo Disney e foi contando a história de cada um...

Por isso, eu e Maria não achamos estranho acordar juntos na mesma cama, afinal, a professora, quando chegava ao fim da nossa história, disse que estávamos levantando nosso casamento que estava desgastado, e depois daquela noite, creio eu, não sobrou mais problema algum entre nós, pois no mês passado decidimos nos afastar por um tempo, fazer uma viagem, enfim...

Ela, seguiu para a China. No retorno trouxe uma essência mágica o qual garantiram que era segredo milenar para despertar o sabor do sexo, se é verdade eu não sei, mas que agora será necessário uma hora de banho, não restam dúvidas...

Eu fiquei sozinho em casa e todos os dias após o serviço juntavam-se em meu estúdio, eu, Maurinho - aquele da guitarra - e Brunão...

Maurinho havia se dado bem na música; Até alguns anos atrás, ele, o Duda - Baterista -, Brunão e Renato, formaram uma banda que fez sucesso durante algum tempo, porém, alguns ideais diferentes fizeram com que se separarassem. Renato continua tocando por aí e está se dando muito bem, Duda até uns anos atrás eu tinha contato, a última informação que tive foi a de sua internação em uma clínica para dependentes, devido ao excessivo consumo de álcool e craque. Sua família decidiu afastá-lo de todos nós como se tivéssemos culpa...

Assim, seguiam-se os dias; eu escrevendo letras, Maurinho e Bruno fazendo o resto, este Bruno vocês não conhecem, mas é hoje marido de Mariana e possuem uma rede de restaurantes pelo mundo, ele, renomado cozinheiro...

Maurinho, não casou, viveu com algumas mulheres durante certo tempo, mas elas não o aguentaram, sempre as trocava pela guitarra... Fez conservatório, faculdade de música, estrelou em uma banda de Rock, não aguentou os compromissos e decidiu viver apenas arranjando bandas até se tornar um dos mais procurados produtores musicais...

Teve alguns filhos, dezenove pra ser mais exato, mas está aí, sempre atento a todos, que por acaso seguiram o mesmo caminho do pai, seja em bandas, no próprio estúdio dele, ou empresariando alguns por aí...

Mauro, adorava as mulheres douradas como ele dizia, até fizemos uma letra certa vez...

Todos nós, com exceção do Duda, nos demos muito bem na vida. A professora, com exceção de nos coibir a infância, não nos maltratou, mas deixou bem claro que todos precisariam de um amuleto que carregariam por toda esta vida...

E lá estava eu, com minha primeira roupa branca, do pré, pendurada em minha sala, sempre acreditei ser ela, depois de Deus e de minha competência a responsável pelo sucesso em minha carreira na área cirúrgica e mais tarde na acupuntura...

Mauro fez uma alteração na guitarra de brinquedo e antes de cada show, gravação, etc...era obrigatório realizar um som com ela...

Mariana colocava na comida um grão, fino como areia e sem sabor, adquirido na Espanha em sua lua de mel e acredita ter sido esta a receita do sucesso dos 32 restaurantes espalhados pelo mundo...

Maria, minha esposa não acredita em nada destas coisas, mas o carinho e o cuidado que ela tem com nossa filha, eu guardo comigo ser a relação do carrinho de bebê e a boneca...

Certa vez, encontramo-nos todos os amigos e paramos para conversar sobre o acontecido aquele dia no pré e diversas vezes rodamos o mundo atrás de soluções que nos trouxessem a infância de volta, mas há pouco resolvemos desistir e aceitar o que nos foi imposto, afinal, não podíamos reclamar...

Descobrimos que não adianta em nada ficar buscando soluções mágicas, a professora deixou que cada um escolhesse o que quisesse. Era cedo demais? talvez... mas quando será a hora? quando realmente cresceremos de verdade e seremos o tão chamado "adulto"?

Após aquela reunião, fomos eu, Maurinho e Bruno para o estúdio, mas recebi uma ligação...

- Eu falei pra vocês que acharia...hahhahaha...eu achei porra...eu achei...vem pra cá caralho!

Era Duda que pediu que o encontrasse e não era necessário falar onde...

Fomos os três para o antigo prédio do famoso pré, hoje abandonado...

Seguimos para o porão, e lá estava Duda...caído e dando gargalhadas no chão da escola, onde, antigamente, fazíamos excursões à noite junto com a professora...

Ele estava com um canudo na mão e um saco cheio de pó branco...droga que até então não havia usado ainda...sabíamos apenas do seu vício por craque e álcool...

Vocês vieram, quero morrer ao lado destes brother´s, hahahaha...

Duda passou a vida inteira acreditando que qualquer dia acordaria e estaria novamente naquela sala onde tudo começou e ao inverso de nós, nunca desistiu...mas aquela cena, anterior ao seu enterro uma semana depois, foi a pior de nossas vidas...

Um amigo com um saco de pó na mão, feliz, desesperadamente feliz, por ter encontrado o pó da professora. Sentimo-nos culpados pois deveríamos ter tirado o saco de pó da mão dele, mas ele viajava e nos iludia contando o que ele estava vivendo naquele momento e cada passagem de sua infância; dos carrinhos que ganhou, da primeira bicicleta, da vez que se afogou e seu pai o salvou, dos carinhos da sua mãe, das medalhas, das disputas infantis, do seu primeiro amor, da sua primeira transa, do falecimento trágico de seus pais e finalmente do desespero de não ter tido o direito de despedir-se deles quando viu-se adulto...

Ouvimos, vindo do fundo do porão, um choro e fortes soluços, era Zeca que ouvia tudo calado e com certeza sentia a mesma vontade que nós...

Duda, no momento em que cada um de nós o abraçava, deu um grito nos expulsando de lá e disse que era este seu último desejo...

Que sumíssemos da frente dele, pois não queria nos ver adultos...

E assim fizemos, até que na semana seguinte, seu tio, que nos odiava, ligou para avisar-nos de seu enterro.

Lá chegando, havia uma carta de Duda para Zeca, seu amigo mais próximo, pedindo que fizesse um filme em detalhes para que as pessoas não desistissem de acreditar em seus sonhos, seja quais fossem as ferramentas, que não deixassem de acreditar em seus amuletos, mas que também não deixassem de viver suas vidas e, que antes de tudo todos fossem crianças até o fim de seus dias...

O filme estreou semana passada, muito bem feito. Zeca superou-se e passou a andar mais vezes conosco; Em conjunto, adquirimos aquele prédio e o transformamos num lar para crianças, onde todas as sextas-feiras, brincamos de igual para igual, saciando nossas vontades...