“Prazer. Sou Ninguém e moro no Mundão”

Num dia cinzento de chuva fina e ininterrupta, uma família passava no conforto de seu carro pelas ruas alagadas do centro da cidade. O pai e a mãe conversam sobre os altos impostos e o preço da gasolina e de como fariam para não comprometer suas férias de verão. Enquanto isso, as crianças brincam no banco de trás saboreando os docinhos de sobremesa que ganharam ao sair do restaurante. Olhando pela janela, Elijah a irmã mais velha, fixa seu olhar a um amontoado de lixo de onde uma magra senhora retirava algo. Ao perceber a praça central, depara-se com uma dezena de pessoas se esgueirando da chuva do jeito que dá, os homens, mulheres, crianças, idosos disputam os locais mais secos entre os cães. Coberturas de lonas, papelão, cobertores e panelas estão dispersos em uma área comum. “Nossa, quanta sujeira, quantos mendigos!” – disse Elijah desnaturalizando a normalidade da exclusão, interrompendo a conversas dos pais e a brincadeira do seu irmão. Num desabafo em alto tom, amargurada pelo que vê, exclama:

- Como podem as pessoas viver assim? Onde estão suas famílias? Como sobrevivem?

A mãe surpresa logo intervém:

- São pessoas que vivem na miséria, filha. Muitas foram abandonadas por suas famílias pelo vício ou por problemas psicológicos. A pobreza é um problema social. Seu pai acrescenta:

- Isso é prova da maior contradição do capitalismo, quanto mais riqueza é produzida maior é a desigualdade social! As pessoas não tem culpa de sua pobreza. Atento, o pai percebe o interesse de sua filha pelo retrovisor.

- Pai, não sei quem é esse tal de Capitalismo, me parece um senhor injusto e ganancioso. E complementa um pouco confusa: - Corta o meu coração ver o abandono das pessoas, gente igual a nós passando fome e sem moradia. Não entendo o que nos faz diferente?

A indagação da menina traz um momento de reflexão aos pais. Buscavam respostas para sua amada e carinhosa filha que desvelava o mundo... Mas o que nos diferencia dos moradores de rua? Três refeições por dia, uma cama aconchegante ou uma conta no banco? Onde estava a dignidade dessas pessoas que viviam dos restos e sobras da sociedade do “bem estar social”? Enquanto pensavam em mil coisas, o carro se aproximava de um cruzamento no exato momento que o sinal ficava vermelho, forçando uma brusca parada naquele inquietante turbilhão de pensamentos sem respostas imediatas, levianas ou superficiais. No mesmo instante, surge um senhor pedindo esmolas com a camiseta amarela rasgada e suja e uma calça preta, os pés descalços e um forte odor de quem não toma banho há alguns dias. O pai abre o vidro da janela e alcança um punhado de moedas que estavam no painel do carro. Prontamente, o senhor estende o braço e abre a mão e sorrindo fala com a voz rouca: - Que Deus abençoe sua família!

Na sua espontaneidade, a curiosa Elijah impele seu corpo a frente e prontamente indaga o senhor:

- Oi... hã... desculpe, qual seu nome e onde o senhor mora?

Surpreso pelo questionamento, o senhor move seu rosto para enxergar de onde vinha aquela voz angelical e com um rosto amargurado e sofrido pela ação do tempo ele responde:

- Prazer, sou ninguém e moro no mundão. Vivo um dia por vez sem esperança de um mundo melhor, apenas espero a morte para descansar do sofrimento.

Elijah ficou chocada, surpresa com a afirmação que escutara e de olhos arregalados ficou observando aquele senhor que lembrava seu falecido avô, enquanto o carro se movia em direção a avenida. O silêncio continuava no carro e só se escutava o soluçar e o choro baixinho daquela menina que estava conhecendo a realidade para além do seu jardim de girassóis.

Publicado no Jornal Litoral Norte RS.

Leonardo Gedeon
Enviado por Leonardo Gedeon em 17/02/2015
Código do texto: T5140112
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