Há Males Que Vem Para O Bem

- Mas Marco, é a Barra Funda!

- Barra Funda que nada Gracinha. É Santa Cecília! Bem pertinho da Praça e também da Igreja. Já imaginou? Vamos poder ir a pé pro trabalho! Fica bem pertinho do Largo do Arouche! Daquela bancada de flores ao ar livre onde você sempre compra flores pra sua avó. Sem mencionar a Confeitaria Dulca! O Almanara! Nossa! Tudo pertinho que nem vamos precisar de carro! E se a preguiça bater, voltamos de Metro! Vamos dar uma olhada Graça! Vale a pena amor! A gente economiza e depois compramos um sobrado na Pompéia ou Sumaré do jeitinho que você sonha daqui uns dois anos.

- E vai adiantar eu dizer que não quero? Pôxa Marco! Você tá querendo retroceder! Estamos em pleno 1980 e você quer, por que quer um apartamento jurássico na Barra Funda enquanto todos nossos amigos estão comprando apartamentos lindos com suite no Sumaré, Pompéia e Perdizes. Francamente, você querendo comprar um elefante branco!

- Santa Cecíla mulher! Santa Cecília! É uma verdadeira pechincha, Gracinha! Vamos dar uma olhada no apartamento do Seu Caetano. Vamos amorzim´!?

- E vai adiantar eu dizer que não quero nem morta?

O Seu Caetano mostrou o apartamento ao jovem casal que já tinha data certa para o casório. Em exatamente seis meses, Marco Aurélio e Maria da Graça estariam na Igreja da Pompéia jurando uma união eterna.

- Então, o que acharam?

- Por mim Seu Caetano ficamos com o imóvel! Mas a Gracinha aqui …

- Pois é, Marco. A última palavra é da senhora. Sempre da senhora.

Os quatro olhos miraram na Graça enquanto ela buscava algum detalhe que pudesse lhe fazer sentir alguma simpatia por aquele mausoléu erguido nos anos ´50. No fundo, a Graça ficava entristecida por não conseguir achar nada naquele apartamento jurássico que lhe agradasse. Mesmo assim, acabo cedendo ao pedido do seu amado e antes de dar o seu sim, a Graça orou ao Senhor e todos os Santos, pedindo forças para morar naquele prédio antiquado muito sem graça que na certa acabaria espantando seus amigos e familiares logo na entrada do hall.

A Gracinha não conseguiu enxergar a profunda tristeza que refletia dos olhos azuis do Seu Caetano quando ele fechava a venda do imóvel com o Marco ao apertarem as mãos bem forte. Aquele apartamento ficara enorme demais para o Seu Caetano que já não contava mais com sua esposa, a Dona Clarinha, nem seus quatro filhos. A vida castigara aquele senhorzinho tirando seus maiores tesouros, e agora, para acabar com seu sofrimento, o Seu Caetano resolveu vender sua casa, seu lar, que na verdade não passava de um imóvel abandonado, sem vida. Ele passaria a morar num asilo para velhinhos, pois já não aguentava mais as noites solitárias naquele apartamento que exalava o perfume da sua amada e projetava as boas recordações em família em cada canto. No asilo, ele faria novos amigos, talvez até uma amiga especial. Ao invés das lembranças que o assombravam, o Seu Caetano teria seu álbum para olhar e recordar quando bem entendesse.

Os meses se passaram rapidamente e com ajuda da irmã do Marco que adorava mexer com DIY (Do It Yourself - Faça Você Mesmo), tecidos, pintura e móveis, a Gracinha conseguiu dar um toque bem bacana e pessoal naquele apartamento jurássico que já não tinha cara de tão antiquado e sombrio como seu antigo dono, o Seu Caetano. O apartamento virou um apê com ar jovial e ousado. Cores vivas iluminavam as paredes e tecidos estampados enfeitavam os ambientes. Quanto milagre num toque feminino!

Um mes após o casamento, Graça convidou a Fê e Dudu para uma jantar especial. O Dudu era o melhor amigo do Marco e com o passar do tempo, a Fê virou confidente e melhor amiga da Graça. O Marco pediu que a Graça chamasse o Ronnie e Rose também. Não tinha como o jantar não ser um sucesso. Os dois casais eram sem dúvida alguma divertidos e verdadeiras joias raras.

Mesmo com o apartamento nos trinques, a Graça sentiu um certo constrangimento com a primeira visita dos amigos, afinal, eles moravam em bairros considerados nobres de São Paulo, como Pompéia, Sumaré e Perdizes. Suas residências eram lindos e modernos apês com suite, quadra de esportes, salão de festa e portaria 24 horas. Na certa, os amigos zombariam do seu novo lar bem no Centro de São Paulo que não tinha nenhuma área verde mas que vinha com um enorme terraço.

Conversa vem, conversa vai enquanto os homens tomavam cerveja e as mulheres cochichavam na cozinha. Passaram se mais de quarenta minutos quando a anfitriã anunciou que a refeição seria servido na imensa sala de jantar.

Ao redor da mesa, a conversa rolava quando o Dudu levantou a sua taça e propôs um brinde.

- Meus parabéns pelo belo apartamento Marcão e Gracinha! Que sejam felizes aqui por muitos anos ... e que vocês não se percam nesse espaço todo! Vamos ter que chamar uma equipe especializada em buscas!

Entre gargalhadas e tintins, os seis amigos deram continuidade ao jantar que a Graça fez no maior capricho.

A Fê não resistiu e disse:

- Amei a sala Gracinha! Ela é enorme! Aliás, tudo é enorme! A nossa sala, cozinha e quarto cabem na sua sala tranquilamente, sabia?

É, pensando bem, cabia sim, pensou a Gracinha. Ela e o Marco foram conhecer o apê da Fê e do Dudu e era realmente o tamanho de um ovo de codorna.

A Rose foi logo acrescentando:

- Nem vão ter que pensar em mudar quando o primogênito chegar! Vocês ainda têm dois quartos enormes!

Após tomar um gole do seu vinho, o Ronnie também quis manifestar o seu parecer sobre o apê dos amigos:

- Sinceramente amigão, estou com inveja desse seu castelo! Nem querendo, consigo me esconder da Rose lá em casa. Tá mais pra `apertamento´ aquilo! Certo que o nosso quarto tem banheiro, mas nem podemos cogitar a possibilidade de fazer uma sacanagenzinha por que é pequeno demais! Dei um pulinho lá no de vocês e ... caramba meu! É um spa particular! Quem sabe um dia rola uma orgia daquelas! Espaço é que não falta!

Os três casais riram muito naquela noite e a Gracinha resolveu acabar com qualquer vestígio de rancor sobre o seu apartamento que ela chegou a odiar com todo seu coração. Quando ela poderia imaginar que o mausoléu do Seu Caetano seria cobiçado pelos amigos!

Entretenimento não era problema para Graça e Marco. Tudo ficava tão pertinho, até o trabalho.

Passaram se uns dois anos, e exatamente como o Marco havia previsto, haviam juntado o suficiente para comprar uma casinha na Pompéia. Mas, como se contentar com uma casinha quando eles tinham um verdadeiro castelo na Santa Cecília? Qualquer ideia sobre mudança estava definitivamente fora de cogitação.

A Rose acertou em cheio. Não tiveram que mudar quando o primeiro filho pintou no pedaço, nem quando o segundo chegou de surpresa. O apartamento era muito espaçoso e gostoso. Dar banho no primogênito, Henrique, e na irmãzinha dele, Thelma, não era nenhuma tempestade num copo d´água por que espaço era o que não faltava. E se o Marco quisesse escovar os dentes ou fazer sua barba, não tinha motivo pra apressar e sair de lá correndo com as crianças por que tinha espaço suficiente para toda família. Aquela banheira enorme que a Graça taxou de entulho velho acabou virando o seu refúgio. Era lá que a guerreira graciosa repousava entre suas velas aromáticas e se colocava de molho nos sais de banho enquanto aguardava o dono do castelo. A banheira era o seu palco dos prazeres noturnos onde ela extravassava as tensões do dia nos abraços calientes do Marco. No dia seguinte, a mesma banheira acolhia os seus dois anjinhos, Rique e Thelminha, oferecendo aquele banho refrescante e divertido com bolhas e bolas de sabão. Quem diria que a Dona Graça poderia ter tal visão tão pitoresca daquele apartamento jurássico.

Se não fosse aquele velho apartamento, a Gracinha teria que temer em soltar seus gemidos noturnos. Ou pior ainda, sussurrar no ouvido do Marco para ele não urrar que nem um felino esfomeado. Mas, o seu castelo tinha paredes grossas que blindavam aqueles momentos de prazer. Nem a Gracinha ou Marcos ouviam os gemidos ou ruídos das noites de sexo selvagem dos vizinhos. Nem tão pouco conseguiam decifrar os sons que vinham da avenida seis pisos abaixo. Os filhos jamais acordaram com os sons que ela e seu marido emitiam na calada da noite, nem quando o Marco cismava em transar após a siesta de domingo. Não era como o 'apertamento' da Fê e do Dudu. Segundo a própria amiga e confidente, após uma noite de amor com o Dudu até os vizinhos sabiam do feito por causa das paredes que eram finas como papel. Quando a Fê pegava o elevador na manhã seguinte, era puro constrangimento ter que dar bom dia aos vizinhos cujos sorrisinhos tortos estampavam explicitamente, "Eu sei o que vocês fizeram ontem à noite". Os olhares dos passageiros no elevador social também denunciavam a Dona Fernanda do Apartamento 604 e seu fogo no rabo que só era apagado com a mangueira mágica do Seu Dudu.

O único problema surgiu quando as crianças viraram adolescentes. O Marco contratou um arquiteto para projetar um banheiro extra mas o encanamento do prédio, mais sua estrutura, na certa, seriam danificados podendo causar transtorno aos vizinhos, portanto, o jeito era estabelecer horários para os filhos e segui-los a risco. No começo era difícil por que o Rique bombardeava os pais com queixas da irmã que adorava dar seus showzinhos no chuveiro e depois estendê-los na frente do espelho. Com algumas conversas, e a compra de um espelho o dobro do tamanho daquele no banheiro, o Marco conseguiu convencer a Thelminha a transferir seus 'shows' para um ambiente mais privê: seu próprio quarto. No geral, os horários funcionavam direitinho e o lar doce lar do Marco e da Graça prosseguia sendo o castelo mágico, sem drama algum.

O tempo passou e as crianças já não são crianças, nem passam muito tempo em casa. A faculdade, o estágio meio-período, o balé, o inglês, os namoros … A Graça e o Marco têm todo aquele espaço só para eles,

quase que diaramente. O Rique chega quase sempre na mesma hora que a Thelma e a Graça sempre com jantar para os filhotes que tomam

aquela ducha vapt vupt antes de atacarem a refeição. Durante o jantar, os filhos relatam o dia aos pais. Os desafios, as vitórias e tudo que aprenderam com seus erros. O Marco vivia dizendo que não havia derrota, a não ser que nada fosse aprendido. Portanto, o Rique e Thelma falavam do aprendizado e do desafio em superar os pontos fracos e derrotas. Verdadeiros tesouros esses filhos maravilhosos desse casal.

Um dia, o Rique perguntou ao Marco meio que sem graça:

- Pai, tem como a Monique dormir aqui em casa na sexta?

- Claro filho! É só abrir o sofá cama no quarto da Thelminha e pronto! Temos muito espaço, né?

- Mas, sabe pai … é que eu tava pensando que a Monique poderia dormir no meu quarto. É que uma noitada no motel tá caro pra caramba e mal consigo pagar um jantar decente depois. Além do mais, só pode

ficar duas horas. É um roubo, paizão.

Pois é, Seu Marco! O seu menino já não é tão menino assim.

- Rique, vou pensar no assunto, ok? É que eu não esperava lidar com um assunto desses, então me deixa pensar e ingerir a ideia toda primeiro e prometo que volto a falar sobre o assunto com você, tá bom filho?

O Rique fez que sim com a cabeça mas no fundo sabia que não rolaria. Pelo menos tocou no assunto como havia prometido à Monique.

O Marco procurou o pai da Monique e os dois conversaram sobre o assunto mas, só depois de terem tomado duas loiras estupidamente geladas. Como não falar com o pai da Monique se o próprio era o seu melhor amigo, o Dudu! O Marco sentiu o constrangimento do amigo mas, o Dudu bem sabia que não tinha como segurar a sua cabrita, principalmente com tanto bode solto.

O Rique era um garoto bacana, muito camarada e o Dudu era seu padrinho. Enfim, a conversa terminou bem para ambas as partes.

Ao chegar em casa na quinta-feira, o Rique foi logo dando boa noite e foi direto pro quarto deixar sua mochila e jaqueta. Qual não foi a surpresa quando ele deparou com uma cama queen size no lugar da sua

velha cama de solteiro! O jovem adulto se jogou na cama e ria sozinho que se acabava. Rique só pensava que o Pai dele era o cara! Também pensava na Monique toda nua na sua imensa cama de casal. Não dava pra acreditar! Uma cama de casal queen size novinha para ele e Monique! Marco realmente era uma paizão!

Marco estava preocupado com a reação da Thelma. Será que a sua princesa já andava dando sessão privê para algum sapo? Quando pensava nisso, o coração do Marcos parecia querer sair pela boca. Mas, se aconteceu com a Monique, porque não com a Thelma? O jeito era pedir pra Gracinha dar uma de Agatha Christie e investigar a vida

amorosa da filha de dezoito anos. Melhor prevenir do que remediar. Se alguém quisesse aterrorizar os jovens nos anos ´70, bastava falar, "Gonorreia". Hoje, tem tanta porcaria por aí que existe uma única sigla para tudo, DST - Doença Sexualmente Transmissível. Mas, a Aids que apareceu nos anos ´80 anda assombra, e não apenas os gays como no início. Hoje, a Aids pega todo mundo.

Mais alguns anos se passam e o Rique, assim como a Thelma, já não moram mais com os pais. Os dois foram para o exterior estudar. Rique levou a Monique a tiracolo e a Thelma foi solo. Depois de quatro meses, ela encontrou, como ela mesma o chama, 'minha cara metade' em Lisboa durante um passeio. Os quatro moram na mesma casa, estudam e trabalham. Voltar pro Brasil? Só Deus sabe. O Dudu quer matar o Rique por ter levado sua filhinha pra tão longe mas, o Marco conseguiu convencer o Dudu da grande vantagem em poder visitar os filhos e aproveitar para assistir a um jogo da Euro Copa enquanto as esposas fazem turismo. O Dudu obviamente deixou de chorar e agora só pensa naquilo: um jogo do seu Timão lá na Europa.

- Gracinha, amor … Que tal a gente vender esse mausoléu e comprar uma casinha lá em Cotia? Ou quem sabe, um sitiozinho lá em Atibaia?

- Ficou louco Marco? Deixar o meu castelo aqui na Santa Cecília?

- É que o bairro não é mais o mesmo Graça. As ruas estão sujas e abrigam os andarilhos, sem mencionar os drogados e bêbados. Dia ou

noite, é perigoso demais.

- A gente quase não sai pra rua Marco. Quando saímos é em plena luz do dia e saímos de carro para visita amigos ou família em outro bairro. Além do mais, evitamos andar em lugares que não conhecemos.

- Mas Cotia é um lugar bacana e tranquilo. Muita natureza, hortas ...

- Sinceramente, Marco Aurélio, você acredita que existe lugar tranquilo hoje em dia?

- Sei lá Gracinha. Pensei que você acharia a ideia irrecusável afinal, você queria morrer quando lhe trouxe pra conhecer o nosso apartamento jurássico. Se lembra?

- Faz tanto tempo, né Marco. Hoje, tenho muito amor pelo nosso

mausoléu.

Sem perceber, Graça solta aquele riso que só meninas sabem dar, mesmo aos 59 anos de idade.

- Um lar espaçoso e gostoso onde criamos dois filhos sem ter que ceder nenhum centímetro do nosso canto. Perto de quase tudo e também do Parque da Água Branca onde o Rique e Thelma adoravam brincar e visitar os macaquinhos e ararás. A gente caminhava até a Praça da República que virava a Praça Doce aos sábados só para degustar um sorvete ou tortinha de morango caseira. Depois um cineminha ... Como desfazer do meu castelo encantado, amor!

Como diria a sábia avó da Gracinha - Há males que vem para o bem.

OBS: Comecei a escrever o conto em 6 dezembro de 2013. Estava sumido entre os meus arquivos. Achei e numa sentada terminei. O trecho sobre o sitio em Atibaia é pura coincidência rsrsrsrs É que quando a gente pensa em sítio em São Paulo, logo vem a imagem de Atibaia e o cultivo dos morangos, sem contar as belas hortas. Só faltou o pedalinho, né! rsrsrsrs

Calada Eu
Enviado por Calada Eu em 20/03/2016
Reeditado em 21/03/2016
Código do texto: T5579543
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