A queda

Você, certa vez, me disse que estava cansado. Talvez estivesse mesmo. Mas eu esqueci. Não, eu ainda lembro quando foi, você estava sentado na minha frente, olhando para longe e eu não conseguia tirar os olhos do seu rosto. Seus olhos eram bonitos, claro que eram, eu nunca menti, mas eu ficava estática por causa de outra beleza. Não sei direito porque eu gostava mais quando você saía e perdia o olhar, parecia que nossos corpos ganhavam uma amplitude que eles nunca tinham juntos, isolados da vida.

Eu esqueci foi de perguntar do que você estava cansado. Eu não podia ver tudo que estava nos seus olhos, por mais bonitos que eles fossem e por mais importância que tivesse tudo aquilo que nos rodeava naquele instante. Nós não éramos capazes de compreender tudo.

Até pensei, eu posso ser culpada por esse cansaço. Mas estava ocupada demais em lhe olhar da maneira mais intensa possível. Tinha um lado bom se descolar por alguns segundos do mundo todo e me perder ali, olhando-te cansado, com uns olhos que insistiam em me lembrar da vida.

Você era a junção da vida e do meu egoísmo. Uma união absurda entre a discórdia e a energia. Um poço onde eu me joguei brincando e sem nenhum cuidado. Agora, eu vivo caindo e a única coisa que eu consigo fazer é entender de tudo. E quanto mais eu entendo, mais eu caio e a queda não deixa de dar prazer, pois eu vou dando voltas em torno de mim mesma. Tudo é tão macio e o barulho é constante como o silêncio e me deixa cantar qualquer coisa que eu goste de verdade, sem ninguém dizer nada, me olhar, fazer cara feia. Eu sei que não tem volta. Alguma coisa tem volta? Não, a gente só demora pra ficar sabendo, mas depois, é só cair.

Deve ter mais gente caindo, não é mesmo? Eu sempre fiz tudo certo. De uns tempos para cá, eu andei dizendo umas verdades e gostando do tapa, e já era tarde. Aos poucos, aquela mancha preta lá no fundo vai crescendo. Ela também se aproxima e dá pra ver algumas coisas refletidas. São rápidas. Algumas bonitas, o que não importa porque não tem ninguém para olhar com você. A beleza precisa de gente, carece do encontro, do que não existe mais e do que pode vir a ser. Na queda só há um arbítrio: a queda livre.

Foi sim, foi a pressa que me fez perceber. Estava decidido eu ia ficar parada para sempre, observando a vida, conversando com as pessoas, querendo saber das histórias contadas pelo meu avô. Depois sairia para encontrar todos os amigos que deixei nas cidades que passei. Sempre dizia, um dia eu volto, tenho que ir, sabe como é? É a vida. Não, não era. Eu até tinha minhas defesas. Alguém sempre pergunta, você ia ficar atoa? De papo pro ar, sem fazer nada? E se eu dissesse que eu iria pensar mais coisas do que eu pensava na faculdade? Melhor, eu explicaria que eu ia ficar lendo e conversando, às vezes escrevendo? Tudo bem, melhor ainda, eu decidi, vou pintar quadros, fazer desenhos, construir caixotes para guardar sementes, um pouco de arroz, feijão? Impossível, não eram arbítrios válidos.

Quando eu perdi a hora, parei o meu relógio e percebi a queda, bateram no meu ombro e me chamaram de improdutiva. Uma, duas, três, todas as pessoas. Às vezes, eu lia sobre macro-economia, também estudava matemática. Uma vez tinha um cara querendo puxar papo numa festinha, disse que era economista, mas não conhecia Marx, Dobb, Sweezy, Raúl Prebish. Ele queria que eu fosse para a casa dele tomar um vinho, mas ele achou que Celso Furtado era diretor de cinema. Eu dei uma chance, disse que o Lula precisa ler Keynes. Não deu, só faltou ele dizer que era tucano.

Certas vezes, só me resta a ironia. Rindo do outro e de mim, a queda fica mais suave, talvez eu pare um pouco de pensar no fim. Me ouça, olhe para mim, eu não posso, não tenho o direito ao cansaço. Eu estou fadado a crescente consciência da minha própria condição. Não há como parar, não há o que tocar, o que fazer. Impossível, você nunca iria me entender...

Thiago Marx
Enviado por Thiago Marx em 07/10/2005
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