QUEM É A MULHER DO PADEIRO?

1

Por que não há saídas? Ela não sabia. Respostas em vão. Carne de segunda, sem nenhum cuidado. E quando conversava, Ela apenas fazia as palavras saírem. Não fazia nada, apenas falava. E escrevia do mesmo modo. Ela era estranha. Não lutava. Não comia bem. Apenas falava. Um dia correu em direção ao nada. Sua vida estava uma droga. Então saiu e correu. Correu como nunca havia corrido antes. Entre lagrimas e pesadelos, Ela correu. Simplesmente correu em direção ao nada[...] Em direção ao nada... Mas essa era a vida dela. E tudo começou num dia de sol, ou de chuva. Não há tanta diferença assim se você não liga pras coisas. Num dia de sol ou de chuva, ela correu, ela nasceu.

Nesses dias assim.

2

Ela depositou uma moeda ao passar pelo palhaço e seguiu seu caminho. Os óculos escuros protegiam seus olhos recém acordados da violenta luz do sol, num céu sem nenhuma nuvem. O calor era fatigante. Calor interiorano, pensou Ela que já avistara o café do Sujo. Com as mãos suadas Ela sentou-se na cadeira desconfortável de uma das mesas redondas ao lado de fora. A mesa era de mármore e estava gelada. Ela vestia uma camiseta branca com uma jaqueta e calças jeans. Tirou os óculos escuros e colocou os de grau para examinar o cardápio trazido pelo garçom. Do lado de dentro do café, muitas pessoas comiam e bebiam lendo seus jornais. Ela reparou uma mulher que usava vestido vermelho e camisa branca que cruzava as pernas e deixava a mostra seus tornozelos e parte da canela. Olhou-a algum tempo e como ela sequer havia notado sua existência, desistiu.

- Um natural de queijo e leite com chocolate, por favor – pediu ao garçom que retornara com um bloco de anotações nas mãos.

- Mais alguma coisa, senhorita? – replicou este.

- Não, obrigada – disse Ela recolocando os óculos escuros.

O leite fora servido primeiro. Tomou-o olhando para as pessoas que passavam e pensando na noite anterior. O lanche chegou depois, quando o achocolatado já estava no fim. Ela pediu outro leite e começou a comer o lanche. De vez em quando levantava a cabeça e olhava o movimento da avenida. Eram três e quarenta e cinco e a temperatura do ar estava regular segundo o termômetro. O palhaço não estava mais lá mas as pessoas ainda passavam apressadas junto com os carros e ônibus. Ela se levantou sem pagar a conta e correu. E correu e correu.

3

Ela desligou o telefone e ficou alguns minutos pensando na noite anterior, olhando para o aparelho...

...o dia estava intenso. O sol reluzia nos prédios da capital paulistana fazendo com que a avenida brilhasse ardentemente. A leste e a oeste ela se estendia radiante, extremamente movimentada e silenciosamente calma de dentro dos escritórios. No topo dos arranha céus, erguia-se antenas imensas dividindo espaço com inúmeros heliportos. Guardas faziam a manutenção e observavam céu e terra de suas moradas altivas. Os carros passavam apressados pela avenida fazendo o barulho ensurdecedor de uma Sexta feira. No meio da avenida, postado no canteiro, um palhaço fazia malabarismos com pinos em chamas. A sua frente pessoas passavam apressadas e outras atravessavam a avenida desviando-se dos carros. A sua direita o prédio da emissora de televisão Gazeta erguia-se imponente num paredão de concreto ao lado de uma imensa escadaria. As antenas no topo ficavam numa altura desconhecida pelo palhaço que continuava a fazer suas acrobacias sem notar que em suas costas pessoas aguardavam o sinal abrir para poderem atravessar a rua. A sua esquerda milhares de seres se espremiam na porta de um dos edifícios da Av. Paulista procurando emprego e outras tantas personagens andavam apressadamente para o trabalho. Em linha vertical o palhaço podia observar o prédio do Serviço Social da Industria, piramidal. Por entre os pinos ele via ora sol escaldante, ora pessoas passantes.

5

“oi” diz Ela, que sempre atende o telefone do mesmo modo. Levanta-se da cadeira e procura um cigarro no bolso do paletó estilo cardinho que usara na noite anterior.

“puxa, sempre que ligo na sua casa é a mesma coisa. Essa demora pra atender essa porcaria de telefone... Estava dormindo?” pergunta a voz do outro lado da linha.

“não... Estava assistindo televisão...”

“você não tem televisão...” diz o outro. Uma voz masculina

“quem está falando?” pergunta Ela ascendendo o cigarro.

“sou eu, João. Já são duas horas da tarde, poxa. Você tem que começar a se cuidar. Vai lá no Toto esse final de semana?”

“não sei... Tenho muito trabalho pra fazer, estou meio enrolada esses dias” Ela ligou o radio. Estava tocando U2.

“eu também não sei, meu pai vem me ver fim de semana, acho que vou a algum jogo com ele, faz tempo que a gente não sai. Você soube do Zé?”

“não” disse Ela deixando cair o cigarro no carpete enquanto abaixava o volume. Ao recolhe-lo viu que a brasa tinha feito um buraco. Pisoteou o local com os pés descalços. “o que aconteceu com ele?”

“vai se mudar” disse João. “parece que vai pra Florida”

“Nossa, e onde fica isso?” perguntou Ela distraída com a brasa que queimara seu pé.

“USA. Parece que não estudou geografia...” falou João

“ah é, tinha me esquecido. Você já ouviu a primeira musica do The Gathering do Testament? Esta tocando agora. Muito boa viu cara.”

“já... Fui eu quem te deu esse cd.” Riu João.

“é... tudo bem. Mas porque ele vai pra lá? O cara mora numa puta casa. Piscina, churrasqueira, bosque... o que deu nele, você sabe?

“não... só me disse que ia mudar. Vão fazer uma festa de despedida pra ele lá mas não sei quando vai ser.”

“e você, o que anda fazendo lá na emissora?”

“nada, cara. Aquilo é movido por estagiários. Eu só fico recebendo as noticias. Na madrugada quase não tem nada significativo acontecendo. Fico a maior parte do tempo em chats na Internet.”

“o dia que eu estiver com insônia converso contigo” brincou Ela. “que esta fazendo agora?”

“arrumando umas coisas, uns discos e uns arquivos aqui.”

“quer almoçar? Eu acho que vou no café do Sujo.”

“tá certo. Já almocei mas te encontro lá. Em uma hora, tá legal?”

“sim. Vou estar nas mesas de fora.”

6

O telefone tocou. O brilho do sol, que entrava por uma pequena saliência na janela em meio a uma cortina amarela, revelava o tom amarronzado do interior da sala. Pequenos moveis, a maioria com estofados verdes, desarrumavam a paisagem. Uma leve brisa ondulava a cortina, levantando pó dos livros espalhados sobre a mesa. Nela, haviam dois castiçais dourados cinzelados ao estilo gótico, terminados em hastes encaracoladas de bronze, nunca utilizados. O silvar do vento trepidava a cortina quebrando o suntuoso silencio do quarto. Nas paredes, revestidas com madeirite, teias de aranha brilhavam com o reflexo dos vidros embaçados da janela. Numa outra parede um inseto andava lentamente em direção ao chão.

O telefone tocou novamente e quebrou a monotonia perene do aposento pela segunda vez. Sons do exterior entravam agora acompanhando os raios do sol. Ela abriu os olhos. Observou ao redor o mesmo quarto em que dormira na noite anterior. As paginas dos livros, esvoaçantes, chamaram-lhe atenção. Sem pressa, levantou o corpo e sentou-se na cama. O lençol enrugado e azulado lembrou-lhe a casa da avó, onde a cama era sempre confortável. E uma das listras parecia a silhueta de um dragão. Pensou que seria uma linda tatuagem no ombro esquerdo que poderia descer até o cotovelo, e ainda olhando para a cama, passou a mão em seu braço onde imaginara que ficaria o desenho. O novo toque do telefone despertou-a para a realidade. Olhou para a mesa e avistou o aparelho cinza claro, imóvel, encarando-a como se tivesse mil olhos e todos estavam agora a contempla-la. Passou a mão no cabelo, desvencilhou-se da coberta fina de algodão, presente da tia Edna e permaneceu sentada na cama tentando se lembrar dos sonhos que tivera. Na parede, viu um inseto chegar ao chão e lentamente entrar num buraco da escrivaninha. Divagou sobre a comunidade perfeita do mundo dos besouros e concluiu que não sonhara esta noite. O telefone toca e Ela assustada olha para o inerte e ameaçador aparelho postado a sua frente, a distancia de um braço, talvez um pouco menos. Admirando as teclas, lembra-se do numero da tia Edna, da casa da avó, da antiga namorada e o telefone toca.

Ainda de short, levanta-se silenciosa como a onda de uma praia deserta num dia sem sol. Deixa cair o cobertor ao lado da cama e dirige-se ao banheiro. Abrindo a torneira o telefone toca e Ela lava o rosto. Num mundo sem sons, sem ruídos, sem pressa, a água toca em seu rosto levemente e deixa-se escoar. Enquanto escova os dentes o telefone toca. Ao sair do banheiro de azulejos ocres, despe-se, olha-se e veste-se de maneira adequada ao bom convívio social. Ela observa o telefone que toca mais uma vez. Rodeia a cama e senta-se na cadeira de almofada de veludo, rasgada no canto mas ainda confortável. Fica observando o telefone com uma das mãos apoiando o queixo e pensando para onde teria ido e o que estaria fazendo o inseto que viu ao acordar, quando o telefone toca de novo. Olha para o aparelho que toca de novo, de novo e de novo.

Ela atende.