Sonhado com Glacê

O Santa Cruz tinha perdido pro Baixada, 3 a 1, devia largar mão dessas apostas, mas quando a gente chega lá e vê os caras com aquela disposição, prontos pra detonar e ganhar o mundo não da pra não ter esperança. Eu ainda lembro do velho Carlos. Dava até pra dizer que merecia seleção. Tinha umas roubadas de bola sensacionais, não era como os outros que ficavam olhando pras arquibancadas e imaginando se suas garotas estariam vendo seus passes pra depois serem vendidos pro São Paulo e iniciar uma gloriosa queda de bruços numa rua empoeirada, igual ao Santini. Apostava fervorosamente quando Santini jogava. Nem sempre ganhava, mas ele dava de culhões bem a mostra. Santini não se envergonhava de não jogar em time nenhum, tinha um gato que soltava pelos por todo o tapete velho da casa alugada por um tio, mas mantinha-se firme. Bebia como Garrincha e jogava como um Mane, mas tinha postura. Entrava em campo com as meias sujas e só iria voltar pra casa com um gol ou dois nas chuteiras.

Mas o caso do Carlos era outro. Ele ficava dando gritos como bailarinas quando caem do palco e intimidava os caras. Ele intimidava aqueles bostas. Deixava eles nervosos e eles queriam mudar de canal ou sair da sala como quando as bailarinas caiam. Mas não era tv e eles ficavam e viam. Não enchiam suas barrigas de cerveja semi-gelada e desgastada pelo freezer no domingo. Não. Eram reais assim como Carlos. Sempre apostava e sempre dava certo. Tinha 20 ou 30 paus a menos nos bolsos e ainda tomava whisky olhando pros engravatados nas colunas de cima e mijava nos copos plásticos. Havia muitos perdedores naquelas épocas nos estádios. E isso foi apenas há alguns anos. Poucos anos, menos de dez. E os perdedores foram embora, com medo que suas mulheres os botassem na rua junto com o gato e suas camisteas de escola de samba importadas das favelas do Rio. E eles não apostavam nos jogadores certos. Não apostavam nunca nos certos e isso lhes deixava com raiva e cheios de duvida. Mas os jogadores certos ainda mandavam beijos pras garotas e iam pro São Paulo no fim do ano. E retornavam como sempre trazendo uma sacola plástica e dois ou três contos de réis nos bolsos furados. E se entravam no gramado com as meias sujas eu lembrava do Santini, mas não apostava neles.

Tirei os chinelos e joguei a vara na água. Nenhum beliscão em duas horas. Três caras ao meu lado pescaram vinte toneladas de peixe. Não sei pescar, mas gosto disso. Na praia já começavam a armar as barracas pro artesanato. Monte de bugigangas estranhas. Feitas para enfeiar as casas e as pessoas sempre compram. Potinhos e florzinhas e quadrinhos e tudo o mais. Já ganhei alguns vasinhos de uma amiga. Costumo passá-los pra frente. Não há espaço em casa pra coisinhas pequeninas que as pessoas derrubam quando esbarram. Coisas que ninguém usa e acabam num canto qualquer da casa ou da despensa. Milhares de ornamentos esdrúxulos e descosturados que envelhecem e levam as coisas juntos. Coisas inúteis. O mundo estava repleto de coisas inúteis que não serviam pra nada, e ao invés de jogarem fora resolveram vendê-las as pessoas. A melhor maneira de se ganhar um dinheiro. Vendendo merda. Mesmo que merda seja o seu próprio trabalho. O Samuel resolveu dar aulas de filosofia pra poodles. O Samuel fazia filosofia e estava desempregado, humanos não querem ter aulas de filosofia. Ele abriu um curso pra cachorros de madame. Somente quinze vagas, não era pra todo mundo. Botou anuncio no jornal e fez fila pra matricula na casa dele. Todos são uns imbecis. E ele reprovou três cachorros. Dois porque mijaram na sala de aula. Hoje ele esta rico. Dando aulas pra poodles. Puta piada. Mas uma vez eu mesmo comprei um pica pau da feira pra botar em casa. Ele esta lá dentro de uma gaveta de cuecas. E quando vou vestir as cuecas de manha eu vejo ele, as vezes olhando pra mim, as vezes de bruços e outras de ponta cabeça. Essa é a vida dele. E essa é a minha.

Na lanchonete da rodoviária que eu encontro aqueles pasteis. Adoro aqueles pasteis de palmito. E quem me diz a procedência desse palmito? Penso que não tem plantação de palmito no Brasil, e se tiver, não é suficiente pra todo o pais. Eles vêm importados em latas. Pessoas pegando uma alavanca e girando e olhando pro relógio da industria, vestindo suas luvas sujas e azuis e colocando capacetes de pedreiro com desing arrojado e o logotipo da empresa virando corredores escuros e sujos que não passaria numa inspeção sanitária somaliana e debruçando-se sobre trilhos numa mesa de metal separando os grãos de sujeira e lavando as comidas, jogando numa bacia enorme. Depois pondo seis ou sete palmitos numa lata e fechando-as numa maquina de prensa oleosa, colocando uns rótulos vermelhos com uns desenhos feitos à tinta tóxica e embalando numa caixa com bosta de rato deixando a caixa no deposito e indo pro porto colocada em navios portugueses e trazidas para o nordeste perto de Fernando de Noronha e entrando num caminhão catarinense ficando na metade do caminho na lanchonete e servido ao meu estomago. Estava bom de qualquer modo. Com mostarda melhor ainda. E quem me dirá a procedência da mostarda?