Me Engana Que Eu Amo



Amigas depois dos cinquenta, só se são amigas desde sempre. Mulher solteira parece ameaça aos casamentos e até mesmo ao tal compromisso sério e união estável. A lei da selva é: Não convide solteiras: Poderá se arrepender depois. Por isso, quando a Fátima me convidou para um bingo naquele sábado, logo aceitei. Mais uma noite de molho em casa dormindo na frente da TV antes do programa do Serginho Groisman começar e acordar duas horas mais tarde com dor no pescoço seria lamentávelmente o fim da picada. Quem sabe, na ida ou vinda do bingo, teríamos um momento memorável que nem  'Thelma & Louise'!  


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A mesa escolhida estava estrategicamente perto da entrada e não muito longe dos comes e bebes. Mal sentamos e uma senhora, que parecia muito mais senhora do que nós duas juntas, foi logo informando, "Estamos na quinta rodada, meninas!"  
Jovens voluntários circulavam pelo salão oferecendo cartelas e feijóes aos jogadores.  Compramos logo dez cartelas para não ter que abusar da paciência dos voluntários que já estavam com cara e pique dos 'Walking Dead' (Zumbis) e nem eram 22 horas.
 


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Depois da oitava rodada oficial, Fátima foi providenciar algo para matar nossa sede. Demorou nadinha e lá estava ela de volta com duas cervejas e dois homens a tiracolo.


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"Emme, veja só quem encontrei!" 
"Nem imagino, Fá. Me diga."
"Meu amigo Harrison e o irmão que acabei de conhecer. Como é mesmo seu nome?", perguntou Fátima toda prosa.
" Webster, mas pode me chamar de Web."
Meu Deus! É cada nome que aparece aqui no sul. Será que existe alguma lei que diz que homem nascido nessas terras tem que ter -son no final do nome? Jefferson, Anderson, Cleison, Peterson, Cleberson, Tyson, Jameson ... Se não existe Xisson, podes crer que algum pai desnaturado vai inventar.  
Nos apresentamos e depois dos três beijinhos tradicionais, sentamos e tomamos aquela cerveja estupidamente gelada para matar o calor infernal. Não deu tempo de jogar conversa fora porque uma nova rodada tinha acabado de começar e Webster, nada bobo, colou na Fátima e na cartela dela. Ofereci Harrison uma cartela e sutilmente ele respondeu: "Podemos compartilhar? Não faço questão em levar um penguim de geladeira para casa. Juro." Achei sem graça, mas não deixei transparecer. E assim, os dois casais entraram no espírito do jogo. 
Depois de três rodadas seguidas, resolvemos dar uma paradinha para petiscar.
"Vou de pastel de pizza. E vocês?", perguntou Webster com caneta na mão e uma cartela usada para anotar pedidos.
Fátima foi de pastel de frango e eu de palmito. 
Webster foi logo apressando o irmão, "Vamos logo Harrison. Não temos a noite inteira." 
Harrison colou seus olhos no cardápio e depois de três minutos anunciou, "Vou de pastel de camarão com alho poró."  Éguaaa! Tinha pastel de camarão com alho poró? Se arrependimento matasse, estaria mortinha da silva. O homem sentado ao meu lado parecia não ter apenas paciência, mas também muito bom gosto. 


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O Webster voltou rapidinho com os pastéis que pareciam de Itú, e mais algumas cervejas.
Estava tão faminta que fui logo abocanhando o pastel. Harrison reparou e levemente sorriu. Sorri de volta e nós dois rimos como crianças que acabavam de fazer travessura.
Em quinze minutos, aquele salão encolheu. Parecia não ter mais ninguém no mundo a não ser nós dois. 
O pastel estava uma delícia, e o papo muito mais ainda. Mesmo depois da terceira cerveja, Harrison me pareceu bem calibrado e não avançava nenhum sinal.  
"Harrison .... hummmmm. Seus pais não lhe deram esse nome por causa do Beatle, foi?"
"Como sabe?"
"Hummmm ... Você deve ter uns cinquenta e pouquinho. Eu tinha apenas dois, talvez três quando a Beatlemânia estourou. Pela minha logística, não pode ser o George Harrison, muito menos o Harrison Ford. Então, tô chutando: Presidente William Harrison?"



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"Sinto muito, Emme. Minha mãe era louca pelo galã Rex Harrison."
"Quando ia pensar que conheceria um sujeito nessas bandas cujo nome é Harrison por causa do Rex Harrison."


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As cervejas já estavam fazendo efeito e não consegui segurar o riso que explodiu da minha boca. Aos poucos, o riso diminuiu  e quando o silêncio predominou Harrison contou a  história   do  seu   nome:
"Minha mãe assistiu 'Uma Mulher De Outro Mundo' mais de mil vezes. Era muito apaixonada pelo personagem Charles do Rex Harrison. Escolheu Harrison porque já tinha muitos Charles naquela época - por causa do príncipe - e mamãe não queria que eu fosse mais um Charles. E Rex ... bem ...  Rex era nome pra cachorro naquela época." Ele riu e em seguido tomou
 um gole de cerveja para molhar a garganta. Perguntou com certa curiosidade a origem do meu nome.
"Na verdade, meu nome é Emmeline. Estranho né?"
"Que nada, Em-me-line", ele respondeu soletrando cada sílaba. "Apenas differente e ... muito bonito."
"Quando minha mãe estudou o Sulfragismo, se apaixonou pela Emmeline Pankhurst, daí o meu nome."


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O Webster virou de lado e perguntou se eu não me importava em voltar para casa com seu irmão, porque: "Tô me entendendo muito bem aqui com a Fátima." Não queria estragar a festinha deles, respondi que daria um jeito. O Webster encarou o irmão e disse, "Vai deixar a Emme dá um jeito chamando um Uber da vida ou você leva?" Harrison respondeu, "Se ela deixar, dou um jeito." A minha amiga deu aquele sorriso torto e safado só dela, levantou da cadeira, pegou na mão do seu mais novo parceiro de bingo e  #vamosserfeliz!
Os olhos do Harrison seguiram os dois até a saída e sem perceber balbuciou, "Nunca imaginei que o meu irmão fosse do tipo de homem que a Fá curte." 
"Gosto não se discute. A química é que manda." , eu disse. 
"O meu forte não é química, mas sim gastronomia."
Gargalhei escandalosamente, tipo 'Fafá de Belém'. "Gastronomia? Sério?"
"Acha que brincaria com um assunto tão sério, Emme?" Harrison também não resistiu e riu a risada mais gostosa. Quando as risadas finalmente sossegaram, perguntei, "Rola mesmo gastronomia?"
"Com certeza.", ele respondeu.
"Hummmmm .... Você cozinha?"
Senti a temperatura subir quando ele aproximou e sussurrou no meu ouvido, "Sim."


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Aí foi a minha vez de chegar bem pertinho e dizer com todas as letras, "Qual é seu prato chefe?"

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"Já ouviu falar em 'French Toast'?"
Meu Deus do céu! Quanto tempo não ouvia falar em 'French Toast'! Era solteira, quase criança quando descobri a existência desse prato. 
"Harrison, sem brincadeira ... sempre quis experimentar esse tal de 'French Toast'. Uma amiga prometeu fazer um dia, mas ela foi embora do Brasil e nunca mais voltou. Fiquei na vontade até que caiu no esquecimento."
"Que coincidência, Emme!" O rosto do Harrison iluminou como se tivesse acertado na Mega Sena. 
"Pois é. Você me fez lembrar do maldito 'French Toast' depois de ... sei lá ... trinta e oito anos!"
Harrison avançou mais uma vez e disse safadamente, "Hummm ... Sabe que esse prato é matinal, não é mesmo? Tem que ser servido no café da manhã e de preferência na cama."
Respondo com muita seriedade, "É esse o preço do seu prato?"
Ele faz sim com a cabeça. Aí é a minha vez de avançar o sinal e sussurro ao pé do seu ouvido, "Sua casa ou a minha?" 
"Na minha com certeza. Não sou bobo de me arriscar em cozinha alheia."
Deixei a mão dele pegar na minha e lá fomos rumo à casa do gourmet.

Harrison decidiu investir no ritmo Martinho da Vila. No compasso do devagar, não tinha como errar. 
Vendo que eu tinha reparado na vitrola no canto da sala, foi logo perguntando, "Gosta de Jim Croce?"
"Se eu gosto? Amo as músicas dele! 'Time In A Bottle' é a minha predileta."



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Ele pareceu surpreso por eu conhecer o artista, mas ficou totalmente na dele. "Vamos de Croce então." Sem dúvida, a canção botou mais lenha no nosso fogo fazendo Harrison não perder mais tempo. Olhando bem nos meus olhos declarou,"Emme, a partir de hoje, está proibida de jogar bingo com qualquer outro homem que não seja eu." Só me lembro que quando pensei em rir, fui logo calada com o beijo mais gostoso que já experimentei em todos os meus cinquenta e seis anos de existência. 
Pensei que tivesse esquecido como agradar um homem na cama, mas aos poucos fui lembrando e com toda aquela  paciência de Jó, Harrison foi encaixando tudo tão certinho e deliciosamente que me deixei levar para bem longe. 

Acordei entre lençóis e um edredon queen size que me fizeram lembrar os clásssicos alvinegro, Corinthians X Santos. Hummm ... Santos não! Meu Pai é santista roxo, e lembrar de pai nessa hora é cartão vermelho na certa. Que seja o Botafogo então.



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Aquele cheirinho gostoso invadiu o quarto e me levou a espreguiçar. Quando estava pronta para pular da cama, o meu mais novo gourmet predileto entrou pela porta segurando uma bandeja enfeitada com vasinho de flores e um belo prato.  
"Tá, tá, tá, táááá! Aqui está seu 'French Toast', mon cher!"
Quando botei os olhos no tal 'French Toast' comecei a rir sem parar.
Sem entender nada, ele perguntou qual era a graça.
"Fala sério Harrison .... isso aqui é o tal "French Toast" que estava louca pra comer esse tempo todo?" Voltei a rir e percebi que o gourmet não estava nada feliz com aquele comentário.
Mandei o Harrison voltar logo ao ninho e ele obedeceu. Me aconcheguei toda nele e disse, "Harrison, você me enganou direitinho. Sabia desde sempre que 'French Toast' não passava de rabanada e disse nada, nadinha seu desgraçado!"
Emme jogou o 'French Toast' pra longe e disse, "Não quero café da manhã, nem almoço.  Quero minha sobremesa e já!"



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Moral da história: Nem sempre é sábio googular tudo aquilo que não sabe, ou ignora existir, porque você corre sério risco de não ser surpreendida tão deliciosamente como a  Emme foi.  
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Calada Eu
Enviado por Calada Eu em 27/10/2017
Reeditado em 24/12/2017
Código do texto: T6154655
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