Despertar

Há muitos anos passados eu e meu tio Alonso costumávamos subir no telhado da casa dele para empinar pipa nos meses de junho e julho. Foi uma descoberta que ele fez, o telhado de sua casa possuía uma grande inclinação se tornava uma verdadeira rampa onde o vento se lançava no azul do céu e com ele as pipas subiam muito rápido sem necessidade de ficar correndo pelo campo da olaria, era uma puxada e elas já voavam.

Lembro-me das tardes modorrentas e silenciosas sentado com meu tio na cumeeira olhando a noite chegar como quem não quer nada, filosofávamos sobre os grandes mistérios do universo e descíamos de nosso posto de grandes sábios quando tia Janice nos chamava para entrar porque estava garoando e nem nos dávamos conta disso.

Certa vez enquanto passava minhas férias com meus tios, acordei por volta da meia noite e fui tomar água, meu tio também sem sono assistia algum jogo na TV (essas de caixa de madeira ainda), ele notou que eu passava por ali e me fez um convite incrível que aceitei na hora.

Colocar um agasalho e em silencio para não acordar a tia Janice, subir ate a cumeeira do telhado para ver a cidade do alto, e claro, comer algumas bolachas recheadas neste lugar tão privilegiado.

Assim fizemos, sorrateiramente subimos pela muro da lateral da casa ate o telhado da garagem, e daí a cumeeira. A vista estava mágica, víamos a cidadezinha brilhando com sua luzinhas tremulantes aos pés da montanha e no alto um infinito de estrelas como eu ate então nunca tinha visto.

Olhei para o alto e mergulhei nas estrelas aparvalhado com a sensação do imensurável, meu tio quebrou o silencio com uma pergunta:

-Imagine você... tudo que estamos vendo; a cidade, montanha, céu, estrelas... tudo esta presente neste momento... no qual nos também estamos inseridos.

Eu era precoce o suficiente para entender que meu tio estava falando comigo em uma linguagem que não era a usual, vi que estava sendo tratado como alguém que subira de posto, eu já era uma pessoa com quem se podia falar em um assunto de adultos embora ainda fosse pré-adolescente. Percebi que devia redobrar a minha atenção para não cair do novo posto e porque meu desejo era realmente entender aquele assunto completamente diferente de tudo que se falava no dia-a-dia.

-Como assim tio? - foi o melhor que pude produzir perante o espanto do assunto.

-Tudo isso que nos rodeia e nos mesmo, pertencemos a nossa própria realidade.

Olhei as estrelas tão longe e tentei raciocinar onde ele queria chegar.

-Estamos dentro da realidade então?

-Sim, mas não se trata bem disso a questão. Veja bem, se você pudesse usar uma filmadora para filmar a realidade e consegui-se filmar tudo ao seu redor, inclusive os pontos mais distantes do universo faltaria ainda algo a ser filmado...

Não era bem uma pergunta e sim um raciocínio que tio Alonso dividia comigo e pela frase reticente esperava que adivinhasse "aquilo que faltava filmar depois de tudo".

-Faltaria filmar a...-hesitei por alguns segundos observando o olhar perdido entre as estrelas de meu tio, por fim chutei aquilo que parecia mais obvio: Faltaria filmar a filmadora!

-Exato! somos como a filmadora que filma a tudo mas não consegue filmar a si mesma.

Fiquei orgulhoso por ter acertado, mas completamente em duvidas sobre o significado obscuro das palavras. Era claro que meu tio não falava sobre filmadoras mas de algo maior que me fugia a compreensão. Balbuciei algumas palavras para tentar montar um raciocínio...

-A filmadora que não consegue filmar a si mesma...

-Isso mesmo, ela faz parte da realidade que filma, mas não tem consciência que ela mesma é um objeto desta realidade!

-Se somos essa "filmadora" então nunca nos vemos na realidade a nossa volta? - arrisquei um palpite em uma pergunta insegura

-Mais ou menos assim... - Neste momento perdi meu tio, ele riu falou que estava com frio e que queria tomar uma bebida quente.

Descemos do telhado, tia Janice acordara também e nos deu uma bronca, fui dormir com a cabeça girando tentando entender o quebra-cabeças, adormeci e quando acordei meu tio já tinha saído para trabalhar o sol estava alto e ele já devia estar entregando cartas há horas.

Eu ainda estava de férias o dia estava claro e cheio de brisas maravilhosas que eu podia aproveitar na rampa do telhado. Minutos depois lá estava eu empinando a realidade toda em um fio de linha...

Jose de Assis Carvalho
Enviado por Jose de Assis Carvalho em 06/03/2018
Código do texto: T6272646
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