Olhando agora de longe, parece mentira que a criança exposta a todos os perigos, tenha sobrevivido, embora pequena e franzina, alheia às brincadeiras e mimos de que as outras crianças usufruíam.
Ainda me lembro do arrepio que senti quando a neta e aluna da D. Elvira, nossa professora, subitamente se levantou da carteira e lhe subiu para o colo.
Fiquei pasmada! Pensei, aflita, nas reguadas que a pobre menina levaria de seguida por tal atrevimento.
Inquietei-me profundamente, como se estivesse a presenciar um crime.
Mas não!
A D. Elvira recebeu a menina no colo, desviando-a mansamente, falando-lhe baixinho.
…Eu assistia boquiaberta, meio incrédula meio revoltada.

Todas as febres e maleitas experimentei, sem que alguém se lembrasse de levar-me ao médico.
Levaram-me uma vez, por causa dos dentes de leite: O Dr. Arrancou-me cinco queixais a sangue frio.
Não me lembro como percorri a vereda Barrocal abaixo. Ao chegar ao terreiro deitei-me na grande pedra onde se colocavam as masseiras, junto à casinha do forno e abandonei-me aos raios de sol, que me confortaram e adormeceram.
Quando acordei era noite fechada e eu sentia-me muito combalida.
Lembro-me muito bem de ter tido sarampo:
Foi nas férias da Páscoa.
Ardia em febre e a comichão das pústulas que me cobriam o corpo e não me davam descanso.
Mandaram que me despisse e embrulhasse num cobertor encarnado, cardado no tear doméstico, picava como se fosse de arame farpado.
Tremendo de frio e de calor, ora me enrolava nele ora o afastava para longe.
A minha avó e a sua criada Henriqueta, passaram pelo quarto ataviadas nos seus melhores vestidos.
Iam à missa, na Vila: Era dia de Páscoa e eu não sabia.
Sem piedade, a chave sem muito uso rodou na fechadura.
Não sei quanto tempo fiquei doente, nem quanto tempo terei ficado tão sozinha quanto era costume.
Esquivei-me à morte, mais uma vez, lutando com as minhas fracas forças, como acontecera antes e como aconteceu muitas outras vezes depois.

Agora há um surto de sarampo, crianças e adultos são internados em hospitais onde recebem não sei que tratamentos.
Ainda bem, fico contente por vivermos num mundo mais compadecido… porque dói muito sobreviver num mundo sem compaixão!