Um Santo Paquiderme

O sol ainda nem nasceu e o caminhão corta a estreita estrada de terra que corta a fazenda do senhor Joel em direção ao canavial. Em sua carroceria, se encontra cerca de quarenta pessoas, entre crianças e adultos. José não tira os olhos de Daiana. Ela é filha única e por isso seu pai, viúvo, morre de ciúmes. Muito, por ter medo de ficar sozinho. Por causa disso, ela e Zézinho mantém um secreto namoro, conhecido apenas por Luzia, a irmã mais nova do rapaz. Cátia não tira os olhos de José. Há meses sonha em poder estar em seus braços, mas já não sabe mais o que fazer pra chamar a atenção. Uma vez até pensou que ele era viado, mas nas festas de fim de ano ele acabou ficando com a sobrinha da Dona Maricota, uma menina que vive na capital. Mais do que raiva, o que sentiu foi alívio.

Padre Caio está no quinto sono. Ele se vê na Arca de Noé, entre animais de todo os tipos, tamanhos, cores e formas. Ele anda em busca de Noé, mas nenhum dos bichos, que falam, sabem dizer onde ele se encontra ou pra onde ele foi. De uma hora pra outra o imenso barco começa a se agitar e Padre Caio é arremessado na água. Nesse momento acorda assustado, com uma torrente de água fria em seu rosto, jogado pelo coroinha Pedro.

— Padre, acorda! Tá na hora da missa!

Padre Caio, com uma dor de cabeça de se tirar o chapéu, interrompe Pedro para lhe perguntar se havia alguém na igreja.

— Só as de sempre, padre. Dona Maricota, Dona Joana e a Senhora Couto e Silva. Ah! E Lala.

— E é só pra elas que eu tenho que me levantar? Eu tive que rezar a noite inteira, estou pregado...

Pedro vê o garrafão de vinho no canto da cela e resolve sair para se desculpar com as senhoras. Indignada, a Senhora Couto e Silva resolve ir até o pároco acordá-lo no grito.

— É uma vergonha! O senhor é um padre e como tal jamais poderia preferir dormir a rezar a missa. Levante-se!

Padre Caio conhecia a ladainha e sabia que não adiantava nada discutir ou mesmo sequer reclamar, porque ela sempre arrumava um argumento mais forte pra derrubá-lo.

José vai na frente. Alguns minutos depois vai Luzia e Daiana. Porém nesse dia, Zé foi seguido por mais alguém, Cátia, que bem escondida acompanha o trio, a fim de saber o que tanto faziam todo o dia àquela mesma hora. O que ela vê não lhe agrada aos olhos: Zézinho e Daiana aos beijos. Cátia desaba em lágrimas e Luzia escuta. Tentando proteger o irmão e a amiga, ela se aproxima de Cátia para lhe consolar.

Depois da missa, a única que ainda se encontra na igreja é a cadela Lala, a vira-lata mascote da cidade. Ela é cuidada pelos jovens que freqüentam a praça. Padre Caio se ajoelha perante a imagem de Santa Bárbara e reza. O que ele realmente quer é que a igreja volte a ter movimento, mas ele não consegue mais do que três carolas e uma cadela. Sabe do seu problema com a bebida, mas não consegue recusar os presentes da vinícola do seu Sebastião. Pedro até que tenta, mas só tem doze anos, então acaba sempre sendo ludibriado pelo pároco.

Luzia e Cátia caminham já na área próxima ao rio. Seu rosto está abaixado e as lágrimas continuam a escorrer. Luzia a abraça e as duas não percebem que estão se aproximando de uma voçoroca. A irmã de Zé é a primeira a tropeçar e cair. Cátia não teve tempo de se segurar e foi junto. Passado o susto, as duas se deparam na parede torta da voçoroca com algo que a princípio as assustou, os ossos de uma cabeça de elefante. Elas conheciam de desenho e de televisão, mas nunca imaginaram que pudessem se deparar com aquele animal imenso, mesmo já morto, na frente delas. Imediatamente trataram de chamar os outros pra ver aquilo.

Pedro e Padre Caio conversam a respeito do sonho e o coroinha diz que parece até premonitório o fato de haver água nele e ele ter precisado jogar água para que o pároco acordasse. O padre só acompanha o monólogo, a respeito de sonhos, anjos e premonições, pois está completamente entretido com um copo de vinho.

Uma barulheira vem da praça. O padre e o coroinha estranham e decidem ir ver que confusão toda era aquela. Alguns bóias-frias retiraram os ossos de elefante e trouxeram pro meio da praça no caminhão da fazenda. Pedro assistindo ao rebuliço tem um espécie de “iluminação” e desanda, em alta voz, a narrar o sonho do padre, sempre acrescentando novidades, e a afirmar categoricamente que aquele animal, africano, só poderia estar ali porque é um animal da Arca de Noé, um animal sagrado.

Imediatamente os homens carregaram a cabeça de elefante pra dentro da igreja e as mulheres prepararam um altar. O padre, que soluçava, rezou uma missa em agradecimento àquela dádiva divina. A partir desse dia, é como se Santa Bárbara tivesse ouvido as preces do Padre Caio. A igreja passou a ficar lotada, vindo gente inclusive das cidades vizinhas. De quando em vez, a missa é pregada aos soluços e pequenas hesitações, mas pelo fato de haver no local um animal sagrado, aquilo já não tinha mais tanta importância.

A cadela Lala dorme agora na escadaria da igreja, sempre esperando a melhor oportunidade de entrar e poder pegar um dos ossos. Uma vez quase conseguiu, mas a molecada deu um jeito de colocá-la pra fora.

Um dia, um jornalista da capital passando pela região não pode deixar de notar a grande movimentação em torno da velha igrejinha. Henrique não se conteve, estava horas atrasado, mas resolveu dar uma olhada pra descobrir o que tanto chamava a atenção de toda aquela gente.

— Henrique, isso são horas de chegar?!!! Você devia estar aqui há cinco horas, já! O guerrilheiro não tem tempo pra te esperar, não, e o nosso encontro é daqui a uma hora!

— Relaxa Gabriel, relaxa... A história que eu trouxe vai te animar um pouco.

— Não me venha com os seus furos furados que eu não tô com saco pra esse tipo de contratempo!

— Faz o seguinte, dá uma chance pro Daniel, que ele tá louco pra ir e se bem o conheço já deve ter uma lista imensa de perguntas...

— Me dê um bom motivo pra eu mandá-lo!

— Ossada de elefante é encontrada no interior de São Paulo e cultuada pela gente simples da região como animal sagrado pertencente à mitológica Arca de Noé.

— Daniel!!!!!!!

Augusto está cansado. Mal conseguira ler o jornal de manhã. Saiu de sua sala, abarrotada de pequeninas pedras, vasos quebrados, mapas e sui generis e desceu para a cantina da universidade. A USP está movimentada, com a chegada dos novos calouros. Augusto pede um café e quase o derrama ao ler a notícia de página inteira assinada por Henrique Oliveira. Convoca imediatamente uma reunião e com a equipe devidamente selecionada partem em direção ao paquiderme.

Cátia e Luzia passam a ser assediadas não mais pelos paroquianos, mas por uma gama de jornalistas e pesquisadores que se aglomeram em trailers na cidadezinha. Os pesquisadores cercam a região da voçoroca e descobrem não tratar-se de um, mas de uma manada de mastodontes. Com o apoio da representação vaticana os ossos são retirados da igreja e levados ao Museu de História Natural de São Paulo.

Essa história aconteceu há mais de um ano, porém meu sobrinho em sua visita ao Museu contou-me que no lugar onde está a família de mastodontes vê-se duas velas, um apanhado de moedas e papeizinhos com pedidos.

David Scortecci
Enviado por David Scortecci em 26/10/2005
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