Um sovina na lavagem de dinheiro

Valdemar era conhecido como Tenório Patinhas, apelido que alcançou lonjuras de sua casa, ultrapassou os limites de Cascudópolis. Seu pai chamava-se Tenório Gastão Flores, nome não combinante com sua notória avareza. Depois, línguas zombeteiras proclamavam apropriada a alcunha Patinhas para tachar ao filho, como herança jocosa de um sovina. Tenório Patinhas era Valdemar somente para sua esposa Ernestina, que repelia com veemência o vil cognome quando alguém a chamava de “Dona Patinhas”, assim como ficava tomada de raiva ao acrescerem ao seu nome o infame apelido.

Desavisados ou maliciosos seriam os que a tratavam dessa maneira e nessas ocasiões Ernestina sentia-se injuriada, fervia-lhe o sangue, latejava-lhe a dor da insinuação maldosa. Entre os dentes cerrados, refreava a muito custo uma reação drástica. Prendia a aspereza da frase irrompida em pensamento:

– Que ódio dessa gentalha ignorante!

Com a indignação controlada exclamava: – Meu nome é Ernestina Flores!

Apesar do amor que nutria pelo marido e do respeito que a ele devotava, a paz de Ernestina não alcançava plenitude. Vez em quando lamentava esse fardo que lhe fora imposto após seu casamento. Antes nunca havia imaginado o peso da má-fama do consorte, na prática também sucessor de Tenório Flores. Não bastasse isso, a pecha era todo dia envolvida em invencionices, maledicências que fortaleciam o apelido Patinhas, lado triste de sua união conjugal. Em seu julgamento, um imerecido castigo que ameaçava tornar-se um crônico mal-estar entre ela e seu marido.

Valdemar era dono de uma quitanda muito movimentada e esse comércio rendia o suficiente para o seu sustento, da esposa e de mais ninguém, não tinham filhos nem parentes em casa. Por costume, Valdemar levava o apurado na venda ao banco para depósito em sua conta. Em dias certos fazia um saque no caixa eletrônico em notas de maior valor, na mesma hora levadas para casa onde as guardava em latas vazias de leite em pó. Entupidas de dinheiro, iam para forro de sua casa. Conforme seu juízo, não havia esconderijo mais seguro. Contudo, imprevistos sempre acontecem e mudam a rotina das pessoas. Em certos casos, provocam transformações radicais em seus comportamentos.

Certo dia Valdemar sacava trezentos reais no banco quando sentiu dor de barriga. Apressadamente pôs o dinheiro no bolso e em passos ligeiros tomou o rumo de sua casa. Ao chegar, trancou-se no sanitário. Ernestina logo compreendeu a pressa do marido ao passar por ela com uma expressão de agonia no rosto. Poucos minutos depois Valdemar chamava-a aos gritos e ela correu para atendê-lo. Seu marido parecia estar em pânico e repetia: – Aconteceu uma desgraça! – Valdemar, pelo amor de Deus, o que houve?

– Acabo de perder trezentos reais. – Como perdeste esse dinheiro, marido, explica-me, por favor! – O dinheiro caiu no vaso e na descarga sumiu.

– Não entendi...

– Acho que caiu quando arriei a calça... Estava fora da carteira, no bolso. Só percebi quando fiz a descarga, o dinheiro foi junto.

Atônito, Valdemar queria enfiar a mão no vaso. Não adianta, falou Ernestina, o dinheiro já estaria escorregando para a fossa. Uma hora depois Ernestina conseguiu convencer o inconformado marido a desistir da ideia de esburacar aqui e ali no trajeto do esgoto. Todavia, Valdemar não se dava por vencido. Três notas de cem reais... Como iria recuperá-las? Se não conseguisse, choraria toda vez que lembrasse. Nunca se perdoaria pelo descuido. Nessa angústia veio-lhe outra ideia, levantar a tampa de concreto da fossa. Para tanto, pediria emprestado a seu vizinho Chico as ferramentas necessárias. Por fim aquietou-se ouvindo os argumentos de Ernestina. Chico era um bisbilhoteiro contumaz. Intrometido, logo descobriria onde seriam usadas as ferramentas e qual o motivo do empenho de Valdemar em tão repugnante e pesada tarefa. Ao saber as respostas, sem perda de tempo Chico faria circular por todo o bairro sua descoberta.

No final da semana Ernestina persistia em consolar o marido desanimado e taciturno. A dor de barriga de Valdemar, assim como veio, foi-se. Como sequela restou-lhe o suplício do prejuízo, uma tristeza a tirar-lhe o apetite, um mea-culpa a corroer-lhe o pensamento.

Na opinião de Ernestina, além do trabalho e despesas, a retirada do dinheiro da fossa traria problemas maiores. Havendo demora, havia risco de encontrar as cédulas danificadas pela ação de ácidos. Em bom estado, seriam forçosamente lavadas e presas no varal para secar, movimentos que não escapariam ao vizinho bisbilhoteiro, atento em sua curiosidade mórbida. Logo, em todos os cantos de Cascudópolis estariam falando de Valdemar Flores, denunciado pelo Ministério Público. Sua vida investigada pela polícia, acusado de lavagem de dinheiro e, para piorar, fraude fiscal, prática de caixa dois, pelo tanto oculto em latas no forro da casa. Para os fofoqueiros, uma fortuna não declarada à Receita Federal. Lavagem de dinheiro, caixa dois, sonegação de impostos. Uma séria complicação para um simples quitandeiro.

Embora chateado pelo acontecido, Valdemar sentiu vontade de rir ao escutar tantos disparates.

– Tina, tudo isso é absurdo. Sabes bem que lavagem de dinheiro não é simplesmente lavar com água e sabão. E caixa dois não é guardar dinheiro debaixo do colchão... Ou em porquinhos de barro. – Sei disso, mas o povo à nossa volta não entende assim, para eles lavagem é lavagem, e está acabado; e caixa dois é esconder dinheiro e pronto. Não entendem de outro jeito.

Segunda-feira e Valdemar chegava à sua casa, atrasado para o almoço. Ernestina alegrou-se ao ver a cara de tristeza do marido trocada por uma expressão serena. Acontecera algo de bom para essa transformação. Valdemar agora se mostrava mais confiante, como se houvesse vencido uma enfermidade.

– Tina, quero agradecer-lhe pela paciência comigo e pelos seus conselhos que sempre me trazem benefícios. Cheguei à conclusão que não vale a pena lamentar a perda de qualquer bem material que não se pôde evitar. Vamos seguir nossas vidas passando por cima desses reveses e não permitir que tirem nossa alegria.

O pequeno discurso de Valdemar deixou Ernestina feliz da vida. Ela levantou-se da cadeira e beijou o rosto do marido demonstrando sua aprovação e sua alegria.

Nesse dia Valdemar esteve na prefeitura tratando da renovação do alvará de licença de sua quitanda e na ocasião soube da oferta de novas sepulturas no cemitério municipal, a preços mais baratos. Um bom negócio e Valdemar decidiu comprar duas. Uma ao lado da outra. Esse o motivo de seu atraso para o almoço. Entretanto sobre isso naquele dia nada falou à sua esposa.

Pelo meio da semana Valdemar resolveu contar a Ernestina sobre a compra das sepulturas. Pelo valor da oferta um bom investimento, disse ele, com o objetivo de evitar uma despesa certa que viria algum dia. Pediu à esposa a guarda dos documentos da compra. Duas sepulturas, uma ao lado da outra, com numeração seguida. Para si destinava a de número menor, disso fazia questão. Ernestina estranhou, porém concordou com tudo.

Valdemar havia pensado muito em seu dinheiro guardado em casa. Não tinha tanta certeza agora de estar tão seguro. Afinal, Ernestina ficava só enquanto ele passava o dia na quitanda. Não que o bairro onde moravam fosse perigoso, pelo contrário. A vizinhança vivia em paz e raramente ouvia-se falar de qualquer conflito. Contudo, Valdemar temia uma incursão de malfeitores estranhos. Algum xisnove poderia informar a esses bandidos sobre o tesouro de Tenório Patinhas. Ernestina corria perigo e Valdemar lembrou-se das queixas da esposa, toda hora vigiando o esconderijo das latas.

A solução já havia aflorado à cabeça de Valdemar, desde a hora da compra das sepulturas. Uma ideia que se delineou aos poucos e tomou consistência. Esse o motivo de Valdemar ter superado a tristeza da perda dos trezentos reais e do fim de sua maior preocupação. Havia falado à sua esposa sobre a destinação de uma das sepulturas, restava-lhe dizer que a segunda, de numeração maior, seria o novo esconderijo das latas de dinheiro. No momento adequado, ele próprio, às escondidas, faria uma cova nessa outra sepultura, ao lado. Lá ficaria enterrado seu dinheiro. Ninguém imaginaria isso.

Mais alguns dias e Valdemar revelava seu pitoresco plano à sua esposa. Ernestina recusava-se a acreditar no que ouvia, afligindo-se ao pensar que o marido endoidecera, perdera a razão, obcecado pela segurança do dinheiro. Não concordaria, é óbvio, com tamanha insensatez. Mas, como reagir, como dizer-se contrária a uma ideia amalucada? Com suavidade ou energicamente? Não sabia como e temia um resultado desastroso ao dar sua opinião. Achou melhor ponderar: – Vamos dar tempo ao tempo, disse ao marido. Melhor não tomar decisões precipitadas, pense no valor que está em risco. Vamos analisar prós e contras.

Ernestina queria ganhar tempo para mais uma vez tentar persuadir o marido a depositar tudo no banco, lugar certo para guardar dinheiro.

Na semana seguinte um funcionário da Prefeitura de Cascudópolis bateu à porta da casa de Valdemar Gastão Boaventura Flores, trazendo-lhe uma cartinha assinada pelo administrador do cemitério, solicitando seu comparecimento naquele departamento. No dia seguinte Valdemar foi inteirar-se do que se tratava. Entre desculpas e promessas de reparação, o administrador comunicou-lhe que um defunto foi enterrado por engano em uma das sepulturas adquiridas por Valdemar, dias atrás.

Resolvida a questão, Valdemar voltou às pressas para casa. Ernestina esperava ansiosa para saber o porquê daquela chamada. O marido chegou e contou-lhe tudo. Alívio para o casal, pelo adiamento da execução de um arriscado plano. Valdemar abraçou a esposa e carinhosamente lhe falou: – Você é minha adorável esposa. Meu verdadeiro tesouro. Depois falou:

– Vamos depositar todo nosso dinheiro no banco. Você tem razão, é o lugar certo para guardá-lo. Imagino também que temos o bastante para uma viagem. Agora penso em fazer jus ao meu nome, Valdemar Gastão.