A IGUALDADE FORMAL

Ser igual ao outro em direitos e oportunidades, sempre foi uma questão muito complexa, pois ela esbarra ou na impossibilidade determinada pelos grupos que detém o poder e direcionam a vontade do Estado para consolidar seus interesses, ou esbarra na limitação das camadas dominadas que aceitam a desigualdade travestida de igualdade, como algo normal e natural.

Na verdade, no Brasil, existe uma igualdade formal, uma igualdade garantida no direito, na estrutura legal da sociedade, na norma. O que na verdade não existe, é a igualdade concreta, a igualdade que abarca todos de forma indistinta, que considera o cidadão brasileiro, como um ser de direitos garantidos e respeitados.

A confusão ocorre quando um espertalhão ou espertalhões diversos, tentam e conseguem por meio da estrutura legal, ou mesmo apenas no discurso, convencerem às massas populares, de que “todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza”. Contudo, há a ressalva de que devem ser consideradas suas desigualdades. E essas desigualdades são inúmeras, absurdas e sempre tendentes a transformar o possuidor das desigualdades privilegiadas, em cidadãos tão cheios de privilégios que até parecem pertencerem a outro mundo. O mundo dos ultraprivilegiados, mas que vivem entre nós neste mundo aqui, aqui nesta sociedade da igualdade formal.

Refletindo acerca da igualdade na sociedade brasileira, Manoel Messias nunca conseguiu chegar a uma resposta aceitável. Via pessoas se apoderarem do que era público, sem nenhuma preocupação, sem pudor, sem temor. Pessoas que formam verdadeiras dinastias em municípios ou regiões, e mesmo a nível nacional. Onde se apoderam da estrutura do Estado, para edificarem suas dinastias privilegiadas. Onde a riqueza e as benesses provindas dos cargos que ocupam os tornam podres de rico e cheios de privilégios. Nunca foi possível entender. Mesmo que a pessoa escolhida para ocupar determinado cargo eletivo, escolhido por sufrágio, para ficar por um período cuidando do interesse coletivo em um município, logo que toma posse do cargo, torna-se também proprietário do mesmo, e vê-se como único e legítimo capaz de continuar ali, exercendo função pública. Envenenado pela sedução dos privilégios, não consegue pensar em mais nada que não em se perpetuar e perpetuar sua genealogia naquele e em outros cargos ou postos privilegiados, da estrutura do poder no Brasil.

Quando o indivíduo se torna prefeito, a primeira providência é construir uma teia de bajuladores/apoiadores que possam dar apoio e base a seus projetos particulares. O principal é sem dúvidas, se perpetuar no poder, e para isso necessitam de defensores cegos, que são aqueles pobres coitados que o seguem cegamente e brigam, e intrigam-se com parentes e amigos que por alguma razão vierem a falar mal do seu maravilhoso senhor, daquele que controla sua vontade, sua visão de mundo e seu livre arbítrio.

Manoel Messias não entendia a sociedade brasileira, e as vezes perguntava para alguns de seus amigos, em especial para José Maria:

- Como você pode dizer que o candidato “A” resolverá os problemas de nossa cidade, se o mesmo já foi prefeito dessa cidade por três mandatos, e o pai dele foi prefeito por dois mandatos, e a esposa do mesmo é deputada estadual, o filho é vereador e você fala em novas propostas, em pôr fim a velha política do atraso? Foram essas pessoas que fizeram nosso município ser atrasado, a não ter um hospital, e a educação estar em uma situação deplorável?

O amigo responde:

- Agora é diferente, as propostas são novas, e ele só não fez coisas boas, porque não teve apoio em todas as vezes em que foi prefeito, mas agora será diferente.

Com essas explicações realmente não dava de entender as razões de tanta veneração e cegueira, ao ponto de não ver outras possibilidades, que não fossem as surgidas daquela família que por décadas manipulava os corações e mentes das pessoas.

No que se referia a política partidária a nível estadual, as relações de poder não eram muito diferentes das encontradas a nível municipal. Três famílias que se alternavam no poder e fatiavam cargos e funções entre eles, e sempre estavam nas três vagas para o senado e na maioria das vagas para a Câmara Federal, com membros da família, ou com seus apadrinhados. Ali como em qualquer outro lugar do Brasil, ser governador, senador, deputado, prefeito ou mesmo vereador, havia se tornado profissão, e quem assumia o cargo, não assumia por apenas o tempo que durava aquele pleito, assumia convicto que estaria no cargo ou em um de maior influência, por toda a vida, e infelizmente era exatamente isso que acontecia.

Certo dia Manoel Messias adoeceu e teve que ir ao hospital. Sentia dores constantes quando comia ou deixava de comer alguma coisa. Na cidade onde morava havia um hospital público, como era apenas um trabalhador assalariado, que não teve muitas oportunidades na vida, não possuía plano de saúde ou mesmo dinheiro que pudesse bancar seu tratamento pela via particular. Se dirigiu então ao hospital público acompanhado por sua esposa. Aquele hospital, já estava com onze anos em reforma, e a primeira placa com os valores e prazo para concluir a mesma, estava sem cor, sem vitalidade, assim como a obra, mas ainda era possível ver que na época em que a mesma foi orçada e iniciada, foram direcionados para a construção, 20 milhões de reais, que sem muito esforço racional se percebia que aquele valor daria para construir dois hospitais, e não apenas reformar um. No entanto, o mesmo naquele momento, estava inacabado e possibilitando se fazer apenas consultas ou intervenções simples. Tudo o que fosse mais complexo, deveria ser direcionado para o estado vizinho ou para a capital do estado.

O problema do Manoel Messias, era um pouco mais complexo, mas ele ainda não sabia. Chegou ao hospital, e logo na entrada, havia dezenas de pessoas, embora sendo uma cidade pequena, era a única a ter algo parecido com um hospital em um raio de cem quilômetros. Aguardou por um tempo e quando chegou sua vez de fazer a ficha para a triagem, o atendente já o advertiu que talvez fosse necessário ele se deslocar para a capital. Como não poderia ir a capital, por diversas razões, aguardou a vez de ser atendido.

Na angustia da espera, e da possibilidade de ter que ir a capital, deixar esposa, filhos pequenos, não ter dinheiro, não ter a quem recorrer, ficou a meditar sobre todas aquelas situações que vinham em sua cabeça no momento.

Olhando para o balcão de atendimento, viu sobre o mesmo, uma Constituição da República Federativa do Brasil, e como gostava de ler, a pegou e começou a lê-la.

Possuía uma em sua casa, e tinha noção de algumas coisas, mas nunca teve tanta atenção em ler, como estava tendo naquele momento. Leu o Preâmbulo, e percebeu que aquela lei havia sido elaborada e aprovada em nome do povo brasileiro, por seus representantes diretos, escolhidos em votação. E embora já houvesse folheado e lido algumas partes daquele texto, cheio de termos não convencionais, agora via e lia com mais atenção e interesse.

Passou para os princípios fundamentais, viu que estava lá escrito, determinando que “todo o poder emana do povo” e que os representantes devem apenas e somente, fazer efetivar a vontade do povo, e não sua própria vontade. Indagou a um paciente que estava do seu lado com o braço fraturado:

- Você sabia disso? Todo o poder é do povo, e os políticos devem fazer o que é a vontade do povo.

O paciente sentindo muita dor nem deu atenção a ele, e virou o rosto para o outro lado.

Sem se importar com o desinteresse com razão, do sofrido homem ao seu lado, continuou com sua leitura. Viu que um dos principais objetivos da República Federativa do Brasil, era “construir uma sociedade livre, justa e solidária, promovendo o bem de todos” sem distinção alguma.

Ao Chegar aos direitos e garantias fundamentais, percebe que na forma a Constituição Federal é muito generosa, há diversos direitos no papel, ela é sem dúvidas um conjunto de garantias, de direitos que não poderiam ou não deveriam deixar de serem cumpridos.

Repetiu várias vezes para si mesmo a frase: “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza”. Não poderia ter uma frase mais garantidora de direitos quanto aquela, mas que ao mesmo tempo não era respeitada por nenhuma estrutura de poder. Lembrou-se que ao adoecer, o deputado, o presidente, ou mesmo o prefeito de sua cidade, recorria para ser atendido com todas as regalias e cuidados especiais, aos melhores hospitais do Brasil, e as despesas, eram sempre custeadas com o dinheiro público. Não confiavam no atendimento da rede pública de saúde, para onde eram destinadas às massas populares, sendo uma rede de atendimento de saúde abarrotada de todo tipo de problema. Onde era vista como cabide de emprego para os afilhados eleitorais, e que era vítima de todo tipo de sistemas de desvios de dinheiro público (como a reforma iniciada naquele hospital, que já durava onze anos), e onde, entre outras coisas, morriam milhares de pessoas à míngua, por falta de atendimento ou por atendimentos paliativos ineficientes.

Do seu lado não se encontrava mais o paciente com o braço fraturado, agora no lugar do mesmo, estava uma jovem de uns 14 anos, grávida e com dores e contrações, mas que ainda não havia sido desocupado um leito no setor adequado, para que pudessem fazer um parto normal na mesma, por ser inviável, por falta de materiais, de se fazer uma cesariana. Olhou para aquela moça, e percebeu que os direitos e garantias fundamentais não haviam chegado até a mesma, e seu filho já estava na expectativa de nascimento sem ter direito a tais garantias. Ela, principalmente, por ter tido uma educação que não a evitou de ser mãe tão cedo, e por não ter naquele momento um atendimento, como teria a esposa de um deputado, de um senador da república. Seu filho, por já nascer desprovido de direitos e garantias fundamentais, nascia dentro das expectativas comuns, da maioria sofrida da população. Talvez sendo menina, repetisse a história da mãe.

Perguntou para a mãe da grávida, única pessoa que a acompanhava:

- Onde está o pai da criança?

De pronto a senhora de menos de trinta anos respondeu:

- Nem ela sabe quem é.

Ali estava um triste resultado da falta de atenção do Estado, de várias formas. Por ser omisso em programas de assistência educacional a menores desassistidos das mais variadas formas. Por estruturar um sistema educacional maçante e desestimulante para crianças e adolescentes. Por não cuidar de sua infância, de seus jovens, da forma que os distanciassem dos caminhos espinhosos da vida, e também por se omitir na responsabilidade de educação ética e moral junto às famílias.

Pelo menos naquele caso, viu uma garantia constitucional ser preservada: “o direito de herança”. Com certeza, o bebê daquela menina, herdaria a ausência do Estado em muitas coisas em sua vida, assim como a mãe.

Uma criança de mais ou menos um ano e meio, passou em sua frente ao banco de madeira em que Manoel Messias estava sentado e dezenas de outros pacientes, esperando serem atendidos. A criança estava com o braço engessado e chorando muito. A mãe com cara de sofrimento, cansada e sozinha, tentava acalmar o filho que apontava para o gesso do braço e chorava, talvez por sentir dor ali. Manoel Messias pergunta à mãe da criança:

- Já foi atendido seu filho?

A jovem mãe disse que haviam quatro dias que o braço de seu filho tinha sido quebrado e engessado, e que desde então o mesmo não parava de chorar, por isso voltou ao hospital, mas o médico, disse que era apenas o fato da criança não ter se acostumado ao gesso. Então ela completa:

- Por isso estou ainda aqui, esperando outro clínico geral chegar e analisar o braço de meu filho.

Manoel Messias por não ter comido e por já está se aproximando do meio dia, começou a sentir dores na região interna do abdome. Mudava de posição no banco de madeira, mas a dor insistia em permanecer e ir aumentando aos poucos. Contudo, continuou sua atenta leitura. Chegou na parte dos direitos sociais, e ali percebeu, que todos têm direito a educação, saúde, alimentação, trabalho, moradia, transporte, lazer, segurança, previdência social, proteção à maternidade e à infância e assistência. No exato momento em que lia essa parte, a jovem mãe menina, perdia seu filho, ali mesmo no banco de madeira, por não ter sido assistida por um profissional de saúde. A levam dali, não mais para realizar o parto, mas para ver se ainda há como salvar a vida da mesma. Por ironia do destino, chegam duas outras jovens grávidas e se sentam no banco de madeira, o mesmo em que a jovem mãe estava sentada e se contorcem de dor ali naquele lugar de espera.

Chega um homem muito bem vestido na recepção, que logo é reconhecido, pela maioria das pessoas que se amontoavam para serem atendidas. Era o esposo da diretora do hospital. Havia ido buscar a esposa para almoçar. Era um advogado muito conhecido na cidade, e entre outras coisas, era apadrinhado do atual governador do estado e amigo do prefeito.

Enquanto o advogado aguarda a esposa, Manoel Messias puxa assunto e pergunta:

- Você é advogado, conhece as leis e os direitos das pessoas, não é?

Seu interlocutor responde:

- Sou advogado sim, e o senhor qual o seu problema. De saúde, claro?

- Tenho sentido algumas dores na barriga e quero descobrir o que pode ser.

- Muito bem, espero que der certo para o senhor.

- Você pode me dizer por que os direitos e garantias desta Constituição Federal, não são cumpridos?

Com um gesto, mostrou a capa da Constituição Federal ao advogado. Então o advogado, após um breve silêncio responde:

- Caro amigo, essa lei que é a lei maior de nosso país, seria mais como um conjunto de intenções, que em alguns casos, após o regime militar, se realizaram, como por exemplo as eleições regulares, a independência dos poderes, entre outros. No entanto, devido o afã do momento, colocou-se direitos e garantias no texto constitucional, simplesmente para dar um ar de sociedade de direitos e garantias fundamentais. Uma sociedade cidadã. Uma sociedade plena em direitos. Mas o foco não foi resolver os problemas do Brasil.

Manoel Messias interrompe:

- Então o que está aqui foi só para ludibriar o povo brasileiro? Quando fala por exemplo em igualdade?

- Não amigo, mas o que a Constituição Federal traz é uma igualdade formal, embora seja uma Constituição Social, ela não possibilitou ainda uma igualdade concreta, uma igualdade de fato. No entanto, essa igualdade só não se torna efetiva, devido os poderes constituídos não se interessarem para efetivá-la, ou seja, fazer com que essa igualdade saia da forma e da matéria e vire de fato uma igualdade abrangente e consolidada. Há de se perceber também que o povo, que na verdade, se enquadra como pedinte dos representantes do poder público, deve assumir o seu papel de sujeito do processo e passe a cobrar a efetiva igualdade, a que consta na matéria constitucional. Explicando melhor, direitos e garantias que se encontra nesse texto que você ler.

- E como o povo pode fazer isso?

- Primeiro, sendo senhores de si mesmos, tendo vontade própria, e fiscalizando os maus representantes do povo, e depois, punindo com o esquecimento os representantes que só pensam em si mesmos. Já seria um bom começo. As pessoas devem fazer com que essa Constituição que você segura nas mãos, venha de fato falar a verdade, tenha condições de ser verdadeira, ou seja, de o que ela determina possa ser realizável, pois para que isso ocorra, não é necessário mudar a forma ou a matéria da mesma, mas apenas fazê-la ser efetivada. Isso é possível amigo.

Quando Manoel Messias ia fazer outra pergunta, a esposa do advogado chega e carrega seu marido para longe daquela má influência. Contudo, ele reflete acerca de um ponto que acaba de lhe surgir nas ideias: aquele indivíduo que lhe deu uma boa aula, pertencia justamente ao grupo de poder que mais privilégios tinha no estado, mas lhe mostrou com toda paciência que existem outros meios de gerir uma sociedade, e ainda, que as pessoas podem se acostumar em não serem tão privilegiadas como de fato são. Assim como, os sem privilégios, podem se acostumar a terem diretos e garantias de fato, e não apenas no papel, na matéria ou na forma.

- Não é tão difícil assim, disse Manoel Messias, sentindo uma dor agoniante no abdome.