Dias de Chuva

Dona Yules nunca foi a mesma após perder o marido para a guerra. Via-o traço a traço no rosto de sua filha Joana. Era ápice de primavera e não se via nuvem no céu quando passei por lá. A vaga era de cuidador para criança e exigia, previsivelmente, alguma experiência militar. Joana abriu-me a porta.

— Tem um sorriso forte, senhor — disse.

E entrei com nada além daquele sorriso. Espantara-me as expressões daquela menina, como mantinha sua coluna ereta e também a firmeza no olhar. Joana tinha onze anos apenas.

Sentamo-nos em sofás opostos. Uma mesa ao meio continha um bule com chá ao lado de três torradas num pratinho asseado. Joana sacou uma prancheta de baixo duma almofada.

— A que horas poderia chegar? — disse.

Levei quase um minuto para dizer:

— Chegarei às 7:00 e farei seu café antes que acorde!

— Mas se às 6:30 já estou de pé...

— Às 6:00 então! E não deixo a porta ranger.

— Ótimo!

Joana cruzou as pernas.

— O que fará de comer?

Abaixei-me e mordisquei uma das torradas. Notei logo que não eram as da padaria, alguém cortara o pão, passara manteiga, salpicara orégano e por último levara ao forno. O padeiro não deixaria nunca as bordas pretejarem...

— Farei pães de mel! — eu disse. — Trá-los-ei prontos lá de casa. Gostaria de pães de mel?

— Amo pães de mel! Quero dizer, são formidáveis.

Joana começou a batucar em sua prancheta.

— É melhor mesmo que faça os pãezinhos no forno de sua casa, pois a porta deste aqui está emperrando...

Notei que ela olhou com tristeza para as torradas e, com a unha, arranhou a borda queimada de uma das três. Também fechou os punhos, lembrando talvez que não teve forças para abrir o forno a tempo.

— Por acaso tem filhos? — ela perguntou.

— Nenhum, e você?

— Aqui somos só eu e minha mãe.

— E onde está sua...

— Tem esposa ou alguém que tome seu tempo?

— Não tenho.

— Isso é bom!

— Acha mesmo?

— Faz o que nos dias de chuva?

— Fico em casa, debaixo dos cobertores, tomando um bom chá de hortelã com...

— Aqui não ficamos em casa em dias de chuva! Saímos para o quintal!

Olhei para o quintal, através da porta corrediça de vidro: não havia telhado acima da grama.

— Mas se estiver chovendo, pequena... Lá fora, você vai se molhar.

— Não me importo com isso.

— E se ficar doente?

— Nunca na minha vida eu fiquei doente. — Ela passou o dedo embaixo do nariz.

— Então é mais forte do que eu.

— Com certeza eu sou! Você é magrelo!

— De onde saiu isso?

— É bom que esteja pronto. Não sou fácil de lidar. Mamãe me chamava de “capitã”, pois eu a fazia lembrar do...

Os olhos de Joana se encheram d’água e seus lábios tremeram.

— Falávamos sobre os dias de chuva, Joana! — eu disse, e triturei uma torrada com os dentes.

— Brincaremos lá fora então!

— Por mim, está bem!

Joana de repente olhou para trás, curvou todo seu corpinho sobre o sofá, observando a escada que dava para o quarto de sua mãe.

— Já está perto das 15:00. Nessa hora que chove aqui.

Joana levantou-se e, empertigada, tomou-me pela mão. Caminhamos juntos pelo soalho polido e atravessamos a porta de correr. Chegamos ao quintal. Joana tirou a chave do bolso, trancou a porta pelo lado de fora e correu para o meio da grama.

Um sol radiante passeava sobre nós, não havia sequer rastro de nuvem.

A menina, ao catar um balde e uma pazinha de plástico, foi pra perto de um balanço onde o chão era de areia, começando a brincar antes que eu chegasse.

— Mas não está chovendo, pequena — eu disse. — Não há nem chance de chover.

Quando me aproximei e sentei ao seu lado, Joana puxou-me para perto e cochichou no meu ouvido:

— É nessa hora que chove dos olhos de mamãe.