A Tragédia do Palhaço Xinguilingue

Dez horas da noite de uma quinta-feira, no último andar de um arranhacéu carioca, alguém liga pro Disque Suicídio (um canal do governo pra ouvir gente disposta a suicidar, na tentativa de pacificar e orientar as pessoas a fim de que desistam):

- Alô? Estou sentindo uma vontade imensa de suicidar e….

Uma voz feminina atende:

- Disque Suicídio, Bárbara, boa noite. Com quem falo? Alô? Por que vai suicidar? … interrompe a atendente tentando ganhar tempo.

- Como assim, por que? Eu vou suicidar! - Bradou a voz do outro lado.

- Calma, moço. Diga seu nome e conte-me o motivo…

- Não sei se você precisa saber meu nome, mas meu apelido é Xinguilngue. Sou conhecido como o palhaço Xinguilingue.

Suspeitando tratar-se de um trote, a atendente retruca polidamente:

- Senhor, este é um canal de atendimento ao público, que trata de uma questão muito séria... Não toleramos comportamentos similares a trotes ou piadas…

- Mas não é trote! É verdade! Sou palhaço profissional, entre outras profissões! Não estou passando trote! - Protestou o palhaço interessado na consulta.

A atendente suspira fundo e segue o protocolo:

- Pois então, Senhor "Xinguilngue", vamos prosseguir... Informe suas outras profissões, por favor.

- Então moça, eu venci a última eleição para deputado federal. Estou no mandato ainda. No fim de um mandato, pra ser mais exato. E...

- Olha moço, você só pode estar de brincadeira comigo! Interrompe a atendente energética - Como assim "o senhor era palhaço e foi eleito a deputado"? - Retrucou desconfiada a atendente. - Não é possível que isso seja verdade!

Do outro lado da linha, o palhaço-deputado começa a chorar. E soluça por uns trinta segundos. Percebendo a situação, a atendente silencia. Percebe que estava forçando a barra, suspira fundo, recua reiniciando o protocolo de atendimento e procurando manter o controle da situação.

- Calma, Sr. Xinguilngue… Não fique assim... É que sua condição e história são questionáveis... Não tive a intenção de ofendê-lo... Ser eleito para deputado é uma boa coisa, não é? O cargo é importante, o salário é alto... Por que está sofrendo? O que está tão difícil em sua vida? Não era isso que você queria?

- Snif...snif… Eu não queria ser eleito! - Falou, entre soluços, o palhaço. - Minha candidatura era só um protesto. Estava lá em casa, pensando no tanto de dinheiro que esses caras têm, e como era difícil encontrar soluções para minhas despesas de cartão de crédito… Eu só estava protestando contra o desemprego, contra a safadeza do Governo, contra essas coisas que a gente vê na televisão, sobre política, e não entende nada… Mas as pessoas acabaram me apoiando. Venci com mais de 150 mil votos! Todos que votaram em mim, já achavam que a política estava uma palhaçada mesmo! - E voltou a chorar.

- Olha, Senhor Xinguilngue, quero entender mais sobre essa sua vontade de suicidar... Pode explicar como e quando isso começou?

- Sim, moça, posso explicar: Quando ganhei as eleições para deputado. Eu fiz uma festa. Chamei todos os conhecidos. Anotei os nomes dos meus parentes numa lista. Recebi pedidos de indicação de cargos de assessoria de gabinete, dos prefeitos, vereadores, e de gente do meu partido. Eles diziam que não era para preocupar, pois ajudariam com todas as coisas quando eu vencesse... Eles só precisavam que eu colocasse os filhos e parentes deles trabalhando lá junto comigo em cargos comissionados... Aí, ajudei alguns dos que eram do meu partido, conforme prometido. Porém muitos destes, sequer sabiam ler ou escrever! Ficavam o dia todo à toa, lá no gabinete.

- Mas mesmo sem qualificação profissional? Você teve coragem de recrutar pessoas só pela troca de favores?

- Sim. Isso é comum na política... Eles só ficavam papeando e atendendo telefone...

- Um momento, Senhor Xinguilngue. Atender telefone é uma profissão. Entendo seu protesto, mas vivo disso…

- Desculpe, moça, eu não quis ofendê-la. O fato é que muitas pessoas se aproximaram de mim porque eu tinha uma posição no Governo. Eles queriam que eu mudasse as leis trabalhistas pra ajudar as empresas deles a lucrarem mais, enquanto pagavam salário mínimo pros empregados, sem aumento, e culpando o não avanço das empresas no mercado, na crise econômica mundial!

- Nossa, que sério isso! E o que o senhor fez?

- Ouvi os pedidos. Conversei com muita gente. Uns eram contra, pois eu acabaria com os direitos trabalhistas, mas os amigos dos empresários queriam isso. Daí eles começaram a me ameaçar dizendo que iriam dificultar as coisas pra mim… Foi aí que comecei a sentir medo! Fiquei paranóico! Reuni com os líderes do partido em casa pra pedir uma trégua. Montamos os projetos de lei do jeito que os empresários e empreiteiros queriam, e levei à Plenária pra votação… Tinha medo de que desse certo. E foi aí que o pior aconteceu: os outros deputados também ficaram de acordo!

- Mas você já esperava isso? Indagou a atendente.

- Não! Eu não queria! Eu sabia que a maioria das pessoas eram empregados, e que não era justo que ficassem sem direitos. Entrei em pânico quando descobri que as empresas passaram a demitir muitos pais e mães de família, que agora estavam vivendo de bicos ou até mesmo a margem!

- Mas o que o senhor fez pra atenuar o problema? O senhor pelo menos explicou às pessoas sobre as intenções dos projetos? Pelo menos esclareceu sobre os danos colaterais indesejáveis com a implantação desses projetos? - Interrompeu com consciência a atendente.

- Não! Eu estava morrendo de medo de descobrirem que fui o responsável pela redução de direitos trabalhistas e pelo congelamento dos salários das pessoas. Eu nem dormia direito! Sabia que aquilo tudo era a pior decisão... E que estava apresentando a desculpa mais esfarrapada possível… E esse papo de crise, foi uma desculpa pra aprovar o projeto maquiavélico. Nem em 87, após a ditadura, tivemos uma crise que fosse capaz de dissolver o direito dos trabalhadores... Sei que menti pra todos.. Sei que enganei a todos!

- Nossa, Senhor Xinguilngue! Como você teve coragem de fazer isso? Eu recebi aqui no Disque Suicídio, centenas de ligações de pessoas após perderem seus empregos... Meu Deus, que coisa horrível!

- Eu sei moça. Não estou suportando o fato... Eu que sempre quis ver as pessoas sorrindo, as crianças felizes com suas famílias, todos assistindo o meu espetáculo...Agora, estou com essa situação ruim, com esse peso enorme na consciência. Estou sentindo que acabei de vez com a expectativa de empregos das pessoas, pois vão precisar tabalhar o dobro, pra receber a metade ou nem mesmo o mínimo! E, sem direitos, nem sindicato, nem Ministério do Trabalho que possa fazer justiça em seu favor, elas vão passar momentos muito ruins... Meu Deus, me perdoa! “Bua”... E votou a chorar.

- É, Senhor Xinguilngue... O senhor fez algo muito ruim pra todos nós. Prejudicou muita gente ao mesmo tempo! Como pôde ser tão inconsequente? Tinha que ter feito uma piada com os empresários e empreiteiros e deixado os direitos intocáveis!

- Eu sei moça. Mas o pior ainda não pude te contar…

- Pior? Tem certeza de que existe algo pior do que o que você fez? - Retrucou áspera a atendente.

- Tem. Snif...Snif… nós aumentamos os salários dos juízes para eles darem ganho de causa para as empresas, sem remorsos. Assim, os empresários ficariam livres daquele monte de processos trabalhistas, uma vez que o trabalhador pensaria duas vezes antes de instruir processos contra seus patrões, pois teria que pagar as custas processuais, caso perdesse a causa. E a parte derrotada paga até as custas da parte vencedora…

- Meu Deus! Você apoiou isso Senhor Xinguilngue? Que horror! Não acredito! E os pais e mães de família que ganham salário mínimo? Eles farão o quê pra protestar contra abusos e pedir revisão dos seus direitos? Eles não têm condições financeiras pra custear processos! Que absurdo!

- Eu sei moça… Eu sei… Não estou suportando minha própria desgraça! Não conseguirei viver feliz. Acho que fiz da vida dos outros uma piada muito sem graça. Isso foi a maior palhaçada da minha vida. Sniff...

- É, Senhor Xinguilngue, você precisa colocar a cabeça no lugar e corrigir isso… Mas não se mate, por favor! Cancele esse projeto e lei, oras! Reúna com eles... Deve haver algum jeito!

- Mas moça, eu nunca fui um bom deputado. Os assessores e pessoas do meu partido quem faziam tudo. Eu só ia as reuniões! Não consigo mudar isso! Tem muita gente por trás disso. Tem muita empresa grande bancando os partidos e meus assessores! É o fim!

- Olha senhor Xinguilngue, tenha fé em si e corrija isso! Seja homem! Limpe a política dessa palhaçada que você fez! - Pressionou a atendente enérgica, ciente de que estava quebrando os protocolos de atendimento daquele caso.

- Buá...buá… eu não vou conseguir…Sniff... A culpa é minha e prefiro morrer! O que fiz não teve graça alguma! O palhaço virou deputado só pra roubar a alegria das famílias e dos trabalhadores…

- Não! Você precisa...(...)

A ligação caiu. E com ela, todas lamentações e trapalhadas políticas daquele infeliz.

Nota do autor:

*Xinguilingue é o nome daqueles aparelhos celulares chineses que não funcionavam direito, pois serviam apenas pra criançada brincar de tirar fotos e ouvir música.

Glaussim
Enviado por Glaussim em 19/11/2018
Reeditado em 19/11/2018
Código do texto: T6506208
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