Invasão bárbara

Ele entrou no silêncio, sobre as quatro rodas da cadeira. Um artefato de respeito, silencioso, que o transportava pontualmente para seus afazeres pós-almoço naquele banheiro alvo, alvíssimo. Era o momento de encontro com o seu metro quadrado diário, no mesmo horário, amplamente pronto e desenhado para recebê-lo no porta-abraço aberto de acolhimento.

Mas hoje, foi encontro de decepção de noivo de interior, que não encontra a amada no portão na hora marcada e deixa murchar o buquê pelo vazio de ninguém. Alguém ali lhe faltou o compromisso de recebê-lo, como se fosse o único.

Pronto, pronto, decepção virou resignação, muito maior que o corpo franzinamente contido no assento tecnológico. Não por não poder reinar seu reino, pequeno farto feudo. Mas por querer saber quem poderia ter tomado de assalto aquele seu império, mesmo que por poucos parcos minutos.

Aquele era seu lugar. Chegou um dia a desenhar entre seus neurônios a placa, a exclusividade para dependurar na porta e marcar seu território. Agora, seu recinto, cerrado, trava no vermelho, em uso por outrem. Por quem, se ele era único naquele estado, pelo menos naquele andar?

Muxoxo.

Quem é esse corruptor, a estar no seu lugar? Naquela hora... naquela sempre hora... O lugar era seu, seu. Vai ver o desconhecido conquistador poderia ocupar qualquer outro dos reinos, bem verdade menores, logo ao lado. Mas o seu era grama de vizinho, mais arrumada, mais verdinha e cheia de amplitude de movimentos.

Mirou logo em um injusto, alguém querendo lhe passar a perna, ou melhor, a roda, e vê-lo morimbundo, sem poder usufruir do que era seu de direito. Claro, estava escrito. Era seu... direito.

Ainda tentou na esperança se aproximar para abrir a fechadura por fora, mas redundantemente sabia que algo estava lá trancado. Pensou em perguntar na pancadinha na porta, pelo lado de fora, e saber quem seria o tal petulante. Mas o murrinho pronto ficou no ar. A barbárie seria maior que a dele. Ou não?

Viu que não tinha mais jeito ali. Foi em direção a saída do inverno recinto, na menção de conquistar um outro território. Talvez em outro andar do edifício encontrasse um novo provisório terreno de conquista.

Mas não podia acreditar. Voltou e, na malandragem, mudou drasticamente os afazeres. Puxou um fio dental gratuito da parede, portou-se frente ao espelho. Finalmente achou pretexto para aguardar e confirmar quem seria o larápio de trono alheio.

Parecia limpar cada fresta de cada dente da arcada imperfeita, em qualquer direção. Em norte, sul, todos os cardeais. Capaz de nem precisar voltar ao dentista esse ano, diante do afinco de esperar naquele asseio pelo anseio do rosto escondido por detrás da porta.

Queria mais uns 30 dentes e justificar sua permanência na espera insólita. Mas acabou lançando mão do imundo e gasto fiapo retorcido no lixo, sem resposta para sua pergunta sacal. Quem seria o sacana que fez isso?

Lavou as mãos com dificuldade, já que a pia parecia o Everest, com sua torneira em seu cume. Um cúmulo. Por que não trouxe a escova de dentes e assim ganhar mais minutos para conseguir saber a identidade do criminoso?

Tempo acabado, inútil esperar. Manobrou-se de novo em direção ao corredor de saída por detrás da longa parede, para trocar de andar e fazer o que realmente tinha ido fazer no seu império. Ia fazê-lo, agora em outros ares. Chateação.

Logo os movimentos dentro dos seus muros o fizeram parar. E pensar que estava por fim o reinado provisório. Coroa e cetro voltaria a quem sempre deveria estar em uso deles. E as coisas voltariam a ser como deveriam ser desde sempre.

Antes fosse tudo finalizado ali, com a porta aberta e a posse pelo lugar de volta. Não.

O que importava agora era o retomar do seu absolutismo reinante, e julgar tamanha infringência. Sabia que a partir daquele momento, o poder era ilimitado. Ainda assim contido, poderia fuzilar o invasor no olhar mesmo que a meia-altura.

Afastado e na espreita fingida de quem estaria entrando, na estreia do lugar, a tranca se abriu e alguém aparentou sair. Ainda não o via e aguardou sorrateiro, enquanto o meliante lavava com dificuldade as mãos e as secava nas pernas das calças.

Era hora de colocar na pálpebra o tal cidadãozinho, o incógnito ladrão de poder.

Ouviu no mesmo silêncio da espera o caminhar de pernas, que conduziam o pequeno homem, em estatura incomum, a pisar em sua direção, já que não tinha mais nada a fazer no ambiente.

Os olhares desconhecidos se cruzaram na mesma altura, e a revelação terminou num despedido boa tarde, educado, sem qualquer resposta vinda da cadeira andante. Dela, só pensamentos.

Larápio, larápio.

Efe Mota
Enviado por Efe Mota em 11/12/2018
Código do texto: T6524552
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