As Razões que levam às Ruínas

O menos bom está sempre subordinado ao melhor por sua destinação. Observa-se isto tanto nas obras de arte quanto nas da natureza. Ora, a parte que goza da razão é sem dúvida a melhor.

— Aristóteles

Eram cerca de duas horas da tarde, em meados de julho, a umidade do ar estava baixa. Eu estava sentado fumando meu cigarro, já faziam quinze minutos que aguardava o ônibus atrasado no ponto. A cada trago no Marlboro Vermelho, sentia cada vez mais a respiração seca, provocada principalmente pela típica secura de inverno da metrópole de São Paulo. No entanto, o céu estava completamente aberto, nada de nuvens que demonstrassem proximidade de chuva, isso era bom, pois eu iria ficar a tarde inteira fora... não queria surpresas no tempo. Eu, como sempre, estava muito bem trajado, limpo, primoroso e perceptivelmente sóbrio; era necessário tudo isso, gostava de estar bem apresentável quando ia dar minhas aulas no imóvel de luxo dos Bottanos, no bairro do Jardim Europa – inconfundivelmente aqueles bairros onde o metro quadrado equivale a, mais ou menos, trinta e dois mil e quinhentos reais –. Coincidentemente, meu cigarro chegou ao fim quando o ônibus apareceu no horizonte na direção leste; joguei o restante do cigarro, dei o sinal e adentrei no transporte.

Todas as quartas-feiras eu ia à Mansão Bottano. Meu papel era auxiliar a filha de um dos homens mais ricos do bairro nos estudos das ciências da natureza e política. Esse tal homem não gostava muito dos métodos tradicionais das escolas públicas, preferia sua filha no conforto de sua grandiosa casa, tendo ele a possibilidade de supervisionar os conhecimentos de sua mimada filhota. De forma alguma eu concordava com essa forma de aprendizagem, pois, basicamente, o senhor Botanno era um homem que ficava o dia inteiro sentado em seu escritório com um notebook no colo, enquanto analisava incessantemente a volatilidade das bolsas de valores para saber o momento exato de jogar às cartas – vulgo dinheiro – de suas apostas no mercado financeiro, pessoas assim não tem o mínimo direito de definir o que é conhecimento e sim saber apenas a superficialidade que seus números bancários carrega. Carrego em minha pessoa apenas uma razão: dos rumos que eu tomei em minha vida, compreendi que mesmo que eu carregasse em meu cérebro a Biblioteca de Alexandria, isso de nada valeria para o grande capital. Então, sou eu quem precisa de seus míseros trocados para garantir minha própria existência e, pelo menos, cumprir meu papel como prospector do conhecimento produzido pela humanidade até então. Sendo assim, suportava as falas e as batidas em meus ombros do louvado Bottano que costumava dizer: “você é um rapaz de tamanha cordialidade e inteligência que tenho plena certeza que um dia irá prosperar em riquezas igual a mim. Deveria começar a se preocupar mais com as novas tendências que o mercado quer, colocar sua esperteza em realmente algo lucrativo e próspero que em um curto prazo de tempo você será um novo Rockefeller”. Minha única reação era apertar sua mão e sorrir e, no primeiro momento, virar as costas e revirar os olhos em um sinal de deboche enquanto soltava um suspiro de alívio por me distanciar de uma pessoa que possuí apenas status e nada de erudição. Seu discurso era raso e não era tão difícil saber da onde vinha tamanha limitação mental, bastava uma simples pesquisa na internet para saber que Bottano Jr era o típico herdeiro de uma grande fortuna, tendo unicamente como papel apenas garantir que os negócios da família continuassem até as próximas gerações, nada que envolvessem desafios e sim apenas algumas poucas e simples negociações corruptas com burocratas políticos ou empresários inferiores à sua posição (geralmente da baixa classe média). Era completamente óbvio que ele não herdou a inteligência do pai, pois o mesmo estudou de forma muito aprofundada as limitações e expansão do capital para conseguir garantir tamanha fortuna; deleitou-se sobre as figuras mais célebres da economia clássica como Adam Smith ou David Ricardo, aliás não me surpreenderia que na cabeceira de sua cama tivesse um exemplar do livro “O Capital” de Karl Marx para ter tamanho domínio e conhecimento sobre o sistema que pretende perpetuar, esse sim era digno de admiração entre os burgueses.

Estava descendo a rua em direção à luxuosa casa fumando um cigarro. Observava os grandes muros das casas e me surpreendia com as variabilidades arquitetônicas entre cada uma – diferentemente do monótono estilo das casas periféricas devido a limitação financeira de seus residentes, seguindo geralmente um padrão à risca –, eram dignas de deixar os modelos arquitetônicos georgianos com um certo grau de inveja, sem contar o fato de que a maioria das ruas eram bem asfaltadas, limpas e possuíam um guarda privado a cada esquina; além disso, todas as residências haviam câmeras que eram propositalmente visíveis, possivelmente a intenção era demonstrar que você estava sendo constantemente vigiado, fazendo com que qualquer pessoa estranha àquele recinto tome muito cuidado com qualquer atitude que possa se denotar como suspeita (não me surpreenderia que andar com o capuz de um moletom na cabeça juntamente com as mãos no bolso naquele lugar, poderia ser considerado uma suspeita grave). Já próximo da esquina vejo uma intensa aglomeração. Percebi que era um acidente fatal de carro que causava uma grande curiosidade entre os espectadores. Aguardei para atravessar a faixa de pedestre, uma vez que os guardas de trânsito estavam tentando controlar a bagunça do congestionamento de carro juntamente com a necessidade de travessia dos apressados pedestres. Neste exato momento, um guarda privado que, sem dúvida alguma, trabalhava ali todos os dias por umas doze horas, admirava o acidente como se fosse a única coisa que ele poderia ver de surpreendente em seu dia ou em semanas. Então, notando que eu estava observando o acidente, era um momento ideal para ele puxar assunto com alguém para superar o tédio em sua cansativa rotina. Dito e feito, ele notou meu corpo parado enquanto levava o cigarro a boca, percebeu que era uma oportunidade única para conseguir um cigarro e iniciar um diálogo com qualquer estranho que conseguisse suprir seu tédio naquela tarde tão rotineira.

— Trágico esse acidente, dificilmente acontece por aqui com pessoas tão educadas e cuidadosas em seus volantes. Acho que os motoristas dos dois carros que se chocarem estão mortos — disse ele, enquanto fez um movimento com as mãos pedindo um cigarro. Parecia até que estava tentando fazer um jogo de adivinha com a morte de ambos.

— Percebe-se evidentemente que foi fatal — respondi, analisando a batida dos carros e cedendo um cigarro do meu maço que já aparentava estar no fim —, basta olhar para a SUV, ela está claramente destroçada, acredito que o motorista dela estava em uma alta velocidade, por tais motivos que não dá para saber julgando daqui, precisaríamos de uma análise mais perita. No entanto, isso torna-se óbvio quando vemos que a BMW foi empurrada claramente a metros de distância do local exato do choque da batida. Porém, acredito que a educação do rapaz da SUV seja um pouco limitada em relação ao da BMW. Digo isso pelo fato de ambos estarem de cintos (garantindo que não fossem jogados pelo para-brisas) mas o motorista da SUV não teve educação o suficiente para estar dentro dos limites de velocidade.

— Você tem razão, mas a frieza como você fala é um pouco estranha – respondeu, olhando para mim com uma cara de espanto e algumas gargalhadas enquanto levava o cigarro a boca. — Fico sentado aqui quase todos os dias e feriados, apenas acho que as pessoas aqui por serem bem instruídas, esses acidentes deveriam ser até considerados um caso raro.

— Na verdade, perante esse cenário, percebe-se que a instrução não tem classe social. Também não posso me esquecer, estatisticamente falando, que acidentes automobilísticos se tornou bem comum após a produção em massa do Ford T Preto no início do século vinte. Acrescento também que eu sou o menos frio em toda a cena que aqui nos rodeia, apenas analiso a situação conforme ela se apresenta, não moldei o cenário ao meu gosto, utilizo-me apenas da razão que aqui carrega. Observe a sua volta, temos dezenas de pessoas olhando com firmeza essa cena drástica que é bem recorrente em uma cidade grande, as pessoas estão até bem acostumadas com isso... veja até dialogam sobre a vida enquanto falam sobre o acontecido. Para ser mais preciso, observe aquele homem segurando seu filho nos ombros para que a tal criança conseguir ver com nitidez o acidente; a quantidade de celulares gravando e fotografando para espalhar de forma mundial e instantânea o acontecido e o próprio motorista que estava acima da velocidade antes de morrer. Não parece óbvio que eles apresentam uma frieza muito maior? Aliás a morte do outro se tornou mais superficial tendo em vista sua recorrência em uma cidade que carrega altos índices de violência, acidentes e pouca preocupação humana — respondi enquanto soltava a fumaça do meu cigarro em direção ao céu para não ser mal-educado e acertar alguém naquele grande aglomerado que parecia se expandir mais e mais.

(Breno Aurélio, falta terminar)

Breno Aurélio
Enviado por Breno Aurélio em 08/02/2019
Código do texto: T6570259
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