O menino Moacir

Olá pessoal, gostaria de falar um pouco sobre mim, pode não parecer muito para vocês, mas queria compartilhar uma experiência ímpar em minha vida, quem sabe, talvez apenas levar alguns a um pouco de reflexão. Meu nome é Moacir... Tudo bem, sei que tenho esse nome de tiozão, até posso me considerar um hoje, mas nem sempre foi assim. Já fui um adolescente igual a qualquer outro, digo, qualquer outro, mas talvez não tão igual assim... Cá pra nós, cada um carrega consigo suas próprias individualidades.

A minha mãe dizia que o meu nome foi uma homenagem ao meu avô, um corajoso agricultor que saiu de Montalvânia, uma pequena cidade lá do Norte de Minas, deixou tudo para trás, pegou sua mulher e seus nove filhos e decidiu tentar uma vida melhor na cidade de São Paulo, veio praticamente com quase nada no bolso, apenas algumas poucas peças de roupas em uma velha mala de couro e uma grandiosa esperança em vencer na vida. Mamãe era apaixonada pelo vovô, afinal, além de ser a caçula, era a única filha mulher entre os outros oito marmanjos dos meus tios, falando nisso, deixem-me falar um pouco sobre Dona Marlene, eis aí a minha grande guerreira, uma mulher formidável, sempre acostumada a viver numa família com muitas pessoas, mas depois éramos só nós dois. Perdi meu pai quando tinha apenas três anos de idade, papai era motorista em uma construtora, fazia entrega de material nas obras e morreu em um acidente enquanto fazia o seu último trabalho daquele dia... Coisas do destino, nem era para ele estar ali, o serviço nem era dele, foi apenas dar uma força a um amigo que teve que sair mais cedo porque precisava levar um remédio para o seu filho que estava doente, quando pediu ao meu pai para fazer aquela última entrega no lugar dele, diga-se, a última entrega de sua vida. Não tenho muitas lembranças do meu velho, tudo que mamãe me contava é que ele era um homem carinhoso e muito querido pelas pessoas, seus amigos o chamavam de Johnny, sonhava em estudar Arquitetura, dizia que queria construir uma casa bem bacana para nós em um belo lugar com vista pro mar... Mas tudo que nos restou foi um apartamento na Cidade Tiradentes, periferia de São Paulo. Apesar de todas as dificuldades, e da distância, confesso que gostava do bairro e dos vizinhos, não tínhamos aquela vista pro mar, tudo bem, mas era o nosso querido cantinho.

Todos os dias pela manhã, naquele mesmo horário, estávamos ali naquele ponto de ônibus, perto da esquina, eu ia à escola e mamãe ao seu trabalho. Era um dos poucos instantes em que tínhamos para passarmos juntos e curtir um ao outro. Coitada, trabalhava em dois empregos e ralava muito para pagar nossas contas e despesas, chegava tarde, algumas vezes eu já estava até dormindo. “São os pequenos gestos que fazem a grande diferença em nossas vidas”, essa era a sua frase preferida, pelo menos é uma das quais ainda me faz lembrar essa mulher sensacional. Sempre me dizendo para estudar, me dedicar ao máximo e que buscasse por um futuro melhor. Apostava todas as suas fichas em mim. Talvez fosse por isso que fazia questão de trabalhar em dois empregos, só para me manter estudando em uma boa escola particular. Havia conseguido uma bolsa de 60% da mensalidade, ainda assim, 40% era muita grana para nossa realidade. Falando nisso, deixem-me falar um pouco sobre aquela minha escola. Sinceramente, às vezes eu sentia que não pertencia àquele lugar, nossos professores até que eram legais, o ensino era muito bom, a infraestrutura do colégio era inquestionável, mas a galerinha com o rei na barriga é que me tirava do eixo, ainda bem que conheci o Juba, o meu melhor amigo, nem parecia que ele era de classe média, na verdade, às vezes achava que ele se comportava igual a um mendigo, definitivamente, era o tipo de garoto que não estava nem aí para vaidades, vez ou outra, vinha com meias trocadas, usava o uniforme sujo, nem sei se ele lavava aquela cabeleira ruiva dele… Falando em cabeleira, algumas pessoas pensavam que o seu apelido era por conta dos seus cabelos despenteados, mas na verdade Juba era apenas uma combinação dos seus dois primeiros dois nomes Júlio Baptista. Era um amigo incrível, de um coração maior que aquelas suas unhas sujas e sem corte (risos). Tínhamos muito em comum, gostávamos de ouvir as mesmas músicas, assistir aos mesmos filmes, era tanto em comum que, além de filho único, ele também perdera seu pai em um acidente de trânsito. Dávamos muitas risadas dos jeitos estranhos de alguns professores e daqueles alunos que conseguiam ser bem mais esquisitos que nós. Estávamos sempre competindo um com o outro para ver quem tirava mais pontos nas atividades, claro, o perdedor é quem pagava o lanche na cantina.

Falar da importância de Juba na minha vida é relembrar de uma lamentável ocasião, quando ainda estávamos no sétimo ano. Sem querer, eu pisei no pé de uma garota da nossa sala, de imediato pedi desculpas, mas não adiantou muito, ela começou a me ofender e a me dar todos os adjetivos inimagináveis, contudo foi apenas um único comentário preconceituoso que acabou comigo, naquele dia fiquei muito triste por ser tratado daquele jeito, confesso que sempre vivenciei o preconceito velado, mas ali fora a primeira vez que fui agredido verbalmente por conta da minha cor de pele. Não tive reação, sempre fui um garoto sereno e respeitador, até pensei em revidar na hora, mas lembrei que era bolsista e daquelas palavras de minha mãe: “São os pequenos gestos que fazem a grande diferença em nossas vidas”. O Juba estava ao meu lado, ficou muito “louco da vida” com a garota, acabou perdendo o controle emocional e passou discutir na sala, quase saíram nos tapas, foi quando a professora Neide, de Matemática, entrou e viu tudo aquilo a acontecer, imediatamente levou os dois à coordenação, naquele dia, ambos tomaram uma suspensão de uma semana. Fiquei ainda pior, cada dia, após aquele dia, parecia uma eternidade. Como me esmagava a ideia de imaginar que Juba levaria uma baita bronca da sua mãe, de fato levou, pior era imaginar que poderia perder o meu melhor amigo, ou ele não mais falar comigo, com certeza, foram um dos piores e mais tristes dias de minha vida.

Lembro-me de que aquela semana foi fúnebre, tudo tinha cara de velório, nada tinha graça. Os dias se passaram, era uma quarta-feira chuvosa, finalmente, o dia do retorno da suspensão. A aula começou, a professora Suzana, de Inglês, escrevia o conteúdo na lousa e ambos ainda não haviam entrado pois estavam em reunião com suas mães e coordenadores, a garota chegou antes, entrou na sala, ainda olhou para mim, apenas baixei a cabeça e fingi que não a vi, sentou-se perto das amigas lá pela frente. Lembro-me do Juba entrando naquela sala, pediu licença à professora ao entrar, mal olhou para minha direção, mas chegando bem próximo à minha carteira, olhei em seus olhos e disse:

— Desculpa, amigo...

Ele parou ao meu lado, abaixou sua cabeça e me falou baixinho:

— Não importa o que digam ou pensam, lembre-se sempre de que você é muito especial para se permitir ser rebaixado por pessoas que jamais chegarão aos seus pés. Nunca, jamais se esqueça disso!

Passou a mão na minha cabeça, deu dois tapinhas em minhas costas e dirigiu-se a duas carteira atrás.

Naquele dia, apenas fiquei calado e pensativo, não havia muito o que conversar, só entender o grande valor de uma amizade verdadeira. Enquanto copiava a lição, ouvia o barulho d´agua caindo e sentia o cheiro da chuva que vinha lá de fora, dei uma boa respirada de alívio e voltei a me sentir vivo. Depois daquele ano, nos mudamos para cidades diferentes, nunca mais o vi, mas jamais me esquecerei do meu velho amigo Juba e daquelas sábias palavras de Dona Marlene: “São os pequenos gestos que fazem a grande diferença em nossas vidas”.

Edilson Neres
Enviado por Edilson Neres em 14/02/2019
Reeditado em 03/09/2023
Código do texto: T6575137
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2019. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.