Alguns pingos de chuva

Sentei-me no banco. Esperava ansioso pela chegada do ônibus. Lembrava-me de pouca coisa daquele lugar, mas insistia em tornar as lembranças que me chegavam em realidade. Pensava, pensava e pensava. Será que algo haveria de ter mudado? será que as lembranças que tenho agora não servem-me mais de nada? Recuso-me a acreditar nestas ponderações. O lugar que eu urjo estar deve ser o mesmo daquele que parti. Precisa ser. Algumas gotas de chuva começam a cair.

Olho para frente e vejo diversos carros. Me pergunto se alguma das pessoas que estão dentro deles possuem algum tipo de lembrança tão poderosa quanto a minha. Percebo que elas me invejam. Consigo ver em seus olhares. Tentam penetrar no meu mais íntimo, querem roubar minha lembrança, minha tão querida e amada lembrança.

Uma goteira se forma e pingos começam a latejar em minha cabeça. Dou-me conta de repente mas já estou todo molhado. Olho para os lados, mas ninguém parece ter prestado atenção no que aconteceu. As gotas continuam caindo. Olho para o teto e me pergunto se é assim que funcionam as lembranças, uma gota por vez, até que tudo se esvai. Volto ao centro de mim, me ajeito novamente no banco, espero o ônibus, mas só passam lembranças em minha frente.

Por um momento a lembrança e a realidade se entrelaçam. Não sei em qual estou. Tento voltar para mim, mas não lembro em que momento parti de mim mesmo. Tento fechar os olhos, mas eles já não estavam fechados? Tento sentar no banco, mas eu já não estava sentado? Insisto em sentir a realidade, mas em qual momento deixei de senti-la? Invejo as pessoas que estavam ao meu redor, ou elas me invejavam? Agora só há confusões. Sinto que as gotas voltaram a cair em mim, mas eu não saí do local em que elas estavam caindo? Em que momento isto tudo começou? Como vim parar aqui? Desespero-me, mas lembro, lembro da lembrança que todas as pessoas invejam.

Continuo em minhas recordações. “Menino volte aqui, não pode sair correndo com essa cesta!”. Lembro de algumas palavras como se elas estivessem sendo proferidas hoje. Palavras que me correm e que me constroem. Eu lembro daquela cesta. Tinham algumas frutas muito boas. Lembro do cheiro daquela pera, como se fosse a última fruta presente no mundo. Aguentei um tempo até chegar no local onde a comi. Lembro de sentar na beira do rio e ficar olhando-a por algum tempo. Agora talvez percebo que foi por tempo demais. Mas talvez se este tempo não tivesse passado, se ele não tivesse existido, a lembrança da pera não me seria tão clara agora, não me seria tão vívida. Lembrar de algumas coisas dói, mas vale a pena quando sinto que cresci a partir delas.

Contento-me com a maçã que levo na mochila. Parou de chover, mas algumas gotas ainda caem no lugar de onde me afastei. Levanto, estico as mãos, e percebo que ainda há chuva. Há um cheiro de terra molhada que me faz pensar no passado. Não é como se eu tivesse um futuro para pensar, mas o que é o passado se não um futuro antigo? Me enjoo com o cheiro. Sento novamente e debruço-me sobre mim mesmo. Não entendo mais nada do mundo, mas não é como se um dia eu tivesse entendido. Percorro com os olhos todas as cenas possíveis do mundo exterior. Sinto que nenhuma delas é tão expressiva quanto eu próprio. Volto para dentro de mim e tento sentir, sentir aquilo que ninguém mais pode sentir pois ninguém é eu. Somente eu tenho esses sentimentos, ou será que eles me têm? Não encontro respostas para nada, mas esse nada talvez seja a resposta que eu precise. Levanto do assento. O ônibus está chegando. Espero ele parar, entro no ônibus, sento do lado da janela. Vejo algumas gotas ainda caindo do lugar onde parti.

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Flávio Joni
Enviado por Flávio Joni em 19/04/2019
Reeditado em 19/04/2019
Código do texto: T6627245
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