Risco de viver

DIANA

arrumou-se para o trabalho. Caprichou, pois era o primeiro dia no novo cargo, e seu perfume arrebatador atiçou a libido de, pelo menos, cinco homens (e uma mulher) pelos quais cruzara no caminho. Saiu bem mais cedo de casa do que de costume, para não correr o risco de se atrasar. Embora mantivesse a postura impassível, séria, em seu íntimo carregava uma euforia quase juvenil. Estudara tanto, trabalhara tanto por aquele dia! O dia em que, finalmente, conseguiria desempenhar aquilo que gostava de fazer.

Enquanto corria para o ponto de ônibus, para pegar o circular que a levaria até a estação do trem, foi atropelada por uma van, no meio da avenida, sem nem sequer perceber sua aproximação.

De chofre, perdeu a vida.

EDSON

caminhava despreocupado pelo andaime da obra em que trabalhava. Para abstrair da cacofonia febril de martelos e furadeiras, na construção que subia imparável aos céus da cidade, tamborilava mentalmente a batida de suas músicas favoritas, deixando escapar, de vez em quando, um ritmo balbuciado por entre os lábios semicerrados. Do alto do sétimo andar, sentia a força do vento fazer oscilar levemente o piso que o sustentava, na parte externa da fachada daquele que viria a ser um futuro prédio de apartamentos, moderno, que revitalizaria a porção central e degradada da metrópole.

Mas, alheio às implicações sociais da construção que ajudava a erigir, Edson seguia sua rotina. Seguia tão distraído que, confiante demais, tropeçou na saída do andaime. Como havia acabado de destacar o cordão de segurança, desequilibrou num “eita” rumo à queda fatal.

Deixou mulher e filho.

URIAS

aguardava, em conformada indiferença, pelo número de sua senha no painel eletrônico da clínica pública. Devia estar ali já a duas horas e meia, em paciente espera. O ambiente, seus cheiros e sons, e até o formato da cadeira, já eram conhecidos pelo homem. Idoso, solitário, não dispensava uma oportunidade de consultar o médico, ao menor sinal de fraqueza ou tosse. Acostumados a isso, os atendentes do local já lhe davam a senha com o menor grau na escala de risco, pois sabiam que a frequência do velhinho ao local não passava de mero hobby de uma pessoa carente e desocupada.

Ele mesmo não tinha pressa. Precisava passar o tempo.

Entre um cochilo e outro, acordado por um ronco mais pesado, Urias abaixava-se pela quarta vez naquela tarde para pegar o papelete térmico da senha, que caíra de sua mão fraca. Porém, para susto de todos ao redor, a última abaixada do Senhor Urias resultou numa queda ruidosa, trombada com o assento da frente. Meio sem saber o que fazer, os atendentes foram lentamente tomando consciência da gravidade da situação, e trataram de correr atrás de um enfermeiro que desse os primeiros socorros ao mais fiel dos clientes do lugar.

Mas, não foi necessário. O mal súbito que Urias teve ao abaixar-se, libertou-o da solidão desta vida, antes que a primeira massagem cardíaca fosse aplicada sobre seu adiposo e inerte peito.

SABRINA

estava no leito da maternidade, apreensiva. Controlava, à grande custo, o nervosismo expresso em sua respiração ofegante. Ora, não era a primeira gestação daquela jovem mulher: já tivera dois outros filhos, partos de cesárea, e não era novidade a situação. Porém, essa gravidez tinha algo de especial: era de altíssimo risco. A pressão arterial de Sabrina passara por muitos altos e baixos, e a bebê também não parecia muito bem. A equipe médica estava visivelmente nervosa, embora buscasse passar segurança à parturiente. Porém, não escapou à atenção de Sabrina o fato de que o obstetra evitava cruzar olhares consigo.

(Isso porque ele tinha profunda convicção de que aquela mulher, em poucos minutos, seria uma defunta. Supersticioso, não gostava de encarar os mortos).

Meses antes, aquele mesmo obstetra tentara demovê-la da ideia de seguir em frente com a gravidez em, pelo menos, duas ocasiões, mas nunca obtivera uma resposta definitiva de Sabrina. Ela não se sentia segura em continuar, mas menos ainda em tirar a vida de sua filha. Pensava que poderia se arrepender, e esse sentimento não lhe permitiria ter paz. E, nessa indecisão, levou a gravidez até aquele leito.

Sabrina fechou os olhos para conter uma lágrima, quando, de repente, tudo apagou. Perdeu os sentidos.

Após longa espera numa escuridão inconsciente, viu um clarão branco e turvo crescer como o Sol diante de seus olhos. Aos poucos, imagens tomavam forma. Não sabia se estava no Céu, mas decerto encarava um anjinho chorão que se agitava no colo de uma enfermeira, sorridente e suada, exultante, à sua frente.

Foi amor à primeira vista. O beijo na testa da pequena Viviana selou a luta vivida, para alegria de todas as testemunhas de mais aquele milagre da vida.

Eudes de Pádua Colodino
Enviado por Eudes de Pádua Colodino em 29/05/2019
Reeditado em 29/05/2019
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