O enrolador

O ENROLADOR

Miguel Carqueija

— Alô, Turíbio! Preciso muito falar com você!

— Claro, Augusto! Estou sempre à sua disposição!

— Estou quase acreditando!

— Ué, e por que não?

— Cadê aquele dinheiro que eu te emprestei ano passado?

— Ah, ele serviu muito bem, você sabe...

— Bem, quando é que você vai me pagar?

— Bem, bem... você sabe como são as coisas?

— Turíbio, eu não sei como é coisíssima alguma! Eu só sei que preciso do dinheiro! Lembra do que você me disse na ocasião?

— Augusto, você sabe que eu não tenho a sua memória...

— Vou refrescar a sua memória então. Você disse: “Semana que vem eu te pago”. E você não cumpriu o trato!

— Você está me chamando de mentiroso?

— Estou! Pois você me disse: semana que vem!

— Perdão, mas isso não é exato! Semana que vem pode ser qualquer semana do porvir. Por exemplo, daqui a cem anos, também é semana que vem... muitas semanas...

— E você pensa em levar cem anos para me pagar?

— Que é isso, Augusto! Só passou um ano. Quem sabe, numa semana qualquer daqui a cinco ou dez anos... mas antes disso eu precisava que você me emprestasse mais uns cinco mil...

— Você está louco! Acha que eu não tenho as minhas próprias despesas?

— Ah, não sei. Não sou desses que vivem bisbilhotando a vida alheia.

— Então qual é o problema de você me pagar agora?

— Mas eu não posso, Augusto! Estou com as mensalidades do Clube dos Desocupados bem atrasadas, tenho que comprar a ração do meu jabuti de estimação e além do mais...

— Afinal, você tem alguma previsão?

— Bem, levando em conta a situação do país, o montante da nossa dívida externa, o aumento das tarifas da Light e o nível de desemprego, além do atual câmbio do dólar e a reforma da Previdência, eu calculo que em trinta anos poderei estar com as minhas finanças saneadas, e aí, com certeza, poderei pensar em lhe pagar...

— Isso já é demais, daqui a trinta anos eu nem estarei vivo!

— Não faz mal, pagarei aos seus descendentes...

— Acho que vou é lhe rogar uma praga! Que um raio caia sobre a sua cabeça...

— Esqueça isso, Augusto! Você não precisa do dinheiro que eu lhe devo? Se eu morrer, como é que eu vou te pagar?

— Eu sei disso! É por isso mesmo que eu não te mato!

Rio de Janeiro, 5 de junho de 2019.

Miguel Carqueija
Enviado por Miguel Carqueija em 05/06/2019
Reeditado em 06/06/2019
Código do texto: T6665227
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