Silêncio

As horas já mergulhavam fundo na madrugada e eu ainda estava debruçado sobre meus rascunhos tentando escrever qualquer coisa que valesse mais que meio vintém. Perdido em minhas ideias mal reparei quando ela entrou e só desviei os olhos de minhas folhas borradas por conta da garrafa que fora pousada sobre elas.

“Por hoje chega meu caro escritor, está bastante claro que a criatividade não veio lhe visitar esta noite então você terá de se contentar comigo”. Ela sorriu ao dizer isso, o que espantou qualquer indisposição que a falta de inspiração pudesse infundir em meu âmago.

Resignei-me a desistir da literatura por aquela noite, eu não perderia a oportunidade de degustar um pouco de bebida, principalmente quando poderia usar isso para pedir mais tempo para terminar o capítulo que estava tentando escrever. Afinal, se você não pôde terminar seu trabalho por ter bebido a convite de sua editora, ela não poderia negar um ou dois dias de prazo extra.

Ela mesma serviu a bebida e sentou-se em minha velha poltrona, afundando no estofado já meio gasto em seu formato. Nunca entendi bem o motivo mas sempre achei que ela se parecia com uma boneca quando se sentava ali, quase como se fizesse parte da mobília.

Ficamos em silêncio enquanto bebíamos, não por falta do que dizer, mas por falta da necessidade de fazê-lo. Nós nos conhecíamos bem e exceto quando falávamos de trabalho o silêncio preenchia o espaço entre nós de foma muito mais aconchegante que as palavras. Somente quando nossas taças estavam vazias ousamos perturbar nossa relação com algum ruído.

“Sobre o que estava escrevendo nessa quinzena? Vai continuar falando sobre a bailarina de pernas tortas?” indagou ela, levantando-se para nos servir mais uma dose. Beberiquei um pouco enquanto formulava minha resposta, torcendo para que o sabor de amora do licor adocicasse minhas ideias. “Sim e não, estou narrando o passado do mágico da cartola furada, mas como eles são amigos de longa data ela acaba aparecendo”.

O silêncio se acomodou entre nós e desfrutamos de uma conversa não verbalizada enquanto bebíamos o licor. As taças tornaram a se esvaziar e prontifiquei-me preenchê-las com o que restara na garrafa, inclinando-me para servi-la. Tão perto dela fui invadido por uma profusão de sensações que me aturdiram. Talvez tenha sido por conta do aroma de fumo de maçã, talvez tenha sido por seus lábios vermelhos estarem úmidos de licor, ou talvez eu apenas carregasse aquele desejo desde o início. Quando me dei conta do que estava fazendo, tinha meus lábios pressionados contra os dela.

Tudo não deve ter durado mais que alguns instantes, pois quando afastei-me ela ainda ostentava uma expressão de surpresa e sua mão foi instintivamente em busca dos próprios lábios, num movimento desenvolto que se não tivesse saído tão espontâneo eu julgaria ter sido premeditado. Tornei a sentar-me encarando os diversos papéis em minha mesa, tentando pensar nas consequências daquele ato impensado. No mínimo eu teria que encontrar outro editor.

Para minha surpresa o silêncio que se seguiu não foi constrangedor, não era o mesmo silêncio de antes carregado de cumplicidade e palavras, mas ainda era um silêncio confortável, se o anterior nos envolvia de maneira aconchegante, este nos abraçava como um cobertor grosso em uma noite de inverno.

Reuni um punhado de coragem e voltei meus olhos aos dela, que me fitavam com algo que me lembrou o divertimento, embora fosse ligeiramente diferente. Nunca experimentei uma sensação de alívio tão doce quanto aquela, mas talvez o açúcar viesse do licor.

Schrodinger
Enviado por Schrodinger em 11/07/2019
Código do texto: T6693305
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2019. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.