Fogo e Chocolate

Apesar de eu não estar em condições de gastar um único de meus parcos vinténs furados acabei entrando na cafeteria. Eu nunca fora dado a frequentar aquele tipo de lugar requintado e provavelmente não iria até ali mesmo que dispusesse de uma soma mais substancial de dinheiro, mas calculei que uma xícara quente de café me custaria menos do que as visitas que eu teria de fazer ao médico caso continuasse caminhando na chuva aquela altura do inverno.

Senti uma pequena pontada de arrependimento ao olhar o cardápio. O que havia de mais barato, uma reles xícara de café expresso, me custaria praticamente tudo o que eu tinha no bolso, e eu tinha alguma esperança de que aquela quantia durasse até o fim da quinzena.

Praguejei baixinho, amaldiçoando-me por ter escolhido um lugar tão refinado, mas eu já havia me sentado no balcão e o cavalheirismo, algo arraigado em meu âmago, não me permitiria sair sem consumir nada, então acabei abrindo mão de parte de meu pouco dinheiro.

A jovem garçonete levou pouco mais que alguns instantes para preparar meu pedido, o que fez com que eu tivesse uma xícara fumegante e cheirosa a minha frente pouco menos de três minutos após ter entrado. Beberiquei um pequeno gole, o sabor amargo do café me aqueceu por dentro, aliviando um pouco minha sensação de arrependimento e fazendo com que eu quase conseguisse não pensar em minhas finanças minguando. Quase.

Bebi metade do conteúdo de minha pequena xícara em uma velocidade antinatural, deixando claro a qualquer um que porventura me observasse que eu havia entrado pela lareira e não pelo café. Depois, de maneira extremamente discreta, preenchi o espaço vazio com um pouco do conhaque que trazia comigo. Eu preferia o absinto, mas além de a dama esmeralda ser ciumenta e não se comportar de maneira adequada quando acompanhada de outros sabores, eu não tinha como bancar por algo tão luxuoso.

Enquanto me articulava para guardar o cantil de bebida no bolso interno de meu paletó acabei esbarrando na pessoa que estava sentada a meu lado. Foi de leve, eu apenas bati meu cotovelo no dela, mas já foi o suficiente para que ela quase derramasse oque estava bebendo. Instintivamente me voltei a ela para pedir desculpas, mas todo o cavalheirismo e bons modos que haviam em mim morreram no instante em que eu a vi.

Mesmo agora são poucas as palavras que posso usar para descrevê-la, pois sua mera lembrança faz com que elas me escapem, e mesmo que não o fizessem tenho certeza de que não conheço palavras o bastante para fazê-lo. O que posso dizer é que ela era miúda, que seu corpo era esguio, que ela era delicada, que seus cabelos pareciam uma chama e que seus olhos verdes, ocultos atrás da lente de seus óculos, me fizeram lembrar do sabor doce e entorpecente do anis. Ela era linda.

Não sei por quanto tempo fiquei a observá-la embasbacado, mas devo tê-lo feito por mais do que a elegância julga adequado, pois vi o rosto da moça passar de assustado a intrigado antes de ela finalmente rir da maneira mais meiga e doce que eu já vira alguém gargalhar.

Recuperei o suficiente de minha compostura para abrir um meio sorriso e pedir desculpas antes de voltar minhas atenções a minha xícara. Um cavalheiro teria terminado seu café e se retirado, mas como eu disse a visão encantadora da jovem que se sentava a meu lado havia feito com que qualquer cavalheirismo me escapasse, então continuei a bebericar lentamente meu café com conhaque, olhando-a de soslaio sempre que tinha a chance.

Eu, é claro, esperava que ela não percebesse que a estava observando, mas confesso que, como qualquer criança travessa que se prepara para pregar uma peça em um adulto, não me surpreendi ao ver que ela me encarava. Primeiramente fiquei sobressaltado, sem saber como reagir, mas logo notei que ela ria de maneira graciosa. Senti-me aliviado, ao menos ela achava aquilo divertido. Abri um sorriso torto em resposta, meio admitindo a culpa meio pedindo desculpas, e estava prestes a esconder meu olhar no café quando ela se aproximou.

Nós estávamos perto desde o começo, afinal estávamos sentados lado a lado no balcão, por isso quando digo que ela se aproximou quero dizer que ela se inclinou em minha direção e parou apenas quando seus ombros se encostaram nos meus. Ela estava perto o suficiente para dividir comigo um segredo, de um jeito que apenas os enamorados costumam ficar.

Como o cavalheiro que sempre fui mantive a compostura, mas confesso que só fui capaz de fazê-lo por ela não me dar espaço para o contrário, pois tão logo nossos ombros se encontraram ela baixou delicadamente a cabeça e inspirou o vapor emanado por meu café.

“Eu sabia, conhaque” disse abrindo um sorriso travesso que derreteu o coração do menino que ainda habitava os recantos longínquos de minha mente. Não sei ao certo a expressão que meu rosto desenhou em resposta nem por quanto tempo a sustentei em silêncio, mas quando voltei a prestar atenção no passar do tempo ela tinha o rosto quase colado ao meu, tão perto que eu poderia beijá-la sem nenhum esforço.

“Pode me dar um pouquinho? Meu chocolate já perdeu um pouco da graça” entoou num sussurro. Pude sentir o calor de sua respiração e um agradável aroma de chocolate, que me pareceu bastante apropriado para acompanhar uma voz tão doce.

Quase sem pensar ofereci a ela meu cantil, do qual se serviu de maneira satisfatória mente discreta. Ela completou o volume vazio de sua xícara com a bebida, girou-a um pouco entre os dedos para misturar o conteúdo e bebeu um gole, o que deixou seus lábios pintados de chocolate.

Em troca do conhaque recebi mais um de seus graciosos sorrisos, então ela se afastou e cada um de nós terminou sua bebida sem tornar a olhar para o outro, como os perfeitos estranhos que éramos.

Nós não trocamos mais palavras nem nos entreolhamos antes de cada qual retornar a seu caminho, muito menos voltamos a nos encontrar depois deste episódio, mas ainda me lembro do fogo de seus cabelos e do perfume achocolatado de sua boca. Se me arrependo de algo é de não têla beijado quando a bebida lhe servia de batom, mas isso já são águas passadas.

Schrodinger
Enviado por Schrodinger em 11/07/2019
Código do texto: T6693311
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