A ILUSTRE TESTEMUNHA

Branca propusera a ideia ao seu editor dos livros de poesia que acedera prontamente e a entusiasmara a seguir em frente, levando avante o projecto.

E assim em meados de Outono ela esgueirava-se da casa de família e acompanhada pelo velho mordomo seguia a pé e clandestinamente até ao Princípe Real onde a Senhora Marquesa passava temporadas na casa senhorial de um sobrinho.

A Republica tinha sido proclamada em 1910, a família real partira para o exílio e os tempos da Monarquia não voltariam certamente ao velho Portugal.

Isabel acedera a contar as suas memórias, a deixar um registo de uma época em vias de se esfumar na História:

-Achas que devo aceitar o desafio? – perguntara ao sobrinho, herdeiro do título.

-A Tia é que sabe.Não opino sobre isso.- respondeu-lhe ele.

A nobreza escondia-se mascarada de cidadão comum, a única forma de sobreviver às perseguições políticas ainda activas aos membros da nobreza, anos após a abolição da Monarquia.

-Cada um contribui como pode.Não desempenhei grande papel.Mas Deus favoreceu-me.Permitiu que fosse testemunha de um período áureo que foi destruído talvez irremediavelmente e eu quero, ao menos, que os meus olhos e ouvidos sirvam para afirmar que essa Ordem apesar de todas as imperfeições e erros era bastante mais equilibrada e justa do que a que agora temos.Lembro-me muito bem de quase tudo e a brincar a brincar, percorri os últimos tempos de glória e fausto graças à minha provecta idade.

A Primeira República revelara-se um pesadelo e uma anarquia .Todos os dias havia assaltos às mercearias, os golpes de estado sucediam-se e os presidentes demitiam-se, suicidavam-se ou eram depostos em três tempos.Nem o fim da Grande Guerra nem Fátima e a sua poderosa Mensagem logravam , para já,ajudar a obter a paz e a harmonia tão necessárias ao país.

Branca de Gonta Colaço, a poetisa e figura de considerável apreço pelos entendidos da Cultura decidira dar forma às suas memórias que percorriam cinco reinados e o fim da Monarquia em Portugal.

Subia a escadaria depois de um criado de libré lhes facultar a

entrada no solar.Cumprimentava com à vontade a família aristocrata reunida no salão depois da ceia e depois ela e a Marquesa, uma senhora idosa com a cabeleira toda branca e impecavelmente arranjada, retiravam-se discretamente para uns aposentos reservados à grande tarefa, isolavam-se numa sala adjacente, sentavam-se confortavelmente e a entrevista começava com Branca preparada para ir tomando notas que mais tarde em casa reconverteria em texto.

A Senhora Marquesa era ainda debutante quando a Rainha Dona Maria II morreu ao dar á luz o seu suposto décimo terceiro filho, um nado morto e foi com pesar que assistiu dois anos depois quando atingiu a maioridade à coroação do jovem Rei D.Pedro V, um ancião em corpo de mancebo que desdenhou do Pai, o rei consorte D.Fernando II, o garanhão que para a posteridade foi lembrado como o Rei Artista quando ele se apaixonou perdidamente e se casou com uma cantora lírica.

-Foi um escândalo e pêras! –comentou a Marquesa com um sorriso complacente.

Viu o esforço que o jovem monarca fazia para endireitar as finanças do Estado sempre falido, da sua atenção sincera para com o Povo, do esforço pela promoção da educação e do nível cultural e por uma breve passagem pelo poder marcada por grandes preocupações e maiores pesares.Conheceu a jovem rainha alemã, Dona Estefânia, testemunhou o seu enlevo pelo rei e chorou com a sua morte cruel e prematura um ano apenas depois do seu casamento e coroação.O desgosto do jovem Rei foi imenso e quando os princípes também começaram a sucumbir com febres como a cólera e o tifo ela temeu que o próprio Rei viesse a ser envenenado, e toda a família real ameaçada e proscrita como acontecera havia quase um século em França.Dizia-se muita coisa naquele tempo em que não havia televisão.

O filho segundo. Dom Luis subiu ao trono após a morte um tanto misteriosa do irmão e depois do enlace com Dona Maria Pia, uma princesa italiana da casa de Saboia ela foi convidada para dama de companhia junto da Rainha na Côrte no Palácio das Necessidades.O reinado de Dom Luis foi apesar de tudo esplêndido, das fomes cíclicas, das manobras traiçoeiras, dos vários governos em disputa, e de alguns sinais de descontentamento e conspiração que toldavam perigosamente o horizonte.A Rainha era uma jovem alegre e tresloucada que adorava viajar e comprar toilletes caras em Paris e em Roma.

-Quem quer rainhas, paga-as!

E ela recordava saudosa os saraus, as festas e os bailes.Especialmente os bailes de máscaras que se fizeram no Palácio e onde os Reis mudaram de disfarce várias vezes durante a noite, surpreendendo e divertindo os convidados com os diferentes trajes de cigana, espanhola,Mme de Pompadour, corsário, mouro ou Cardeal Richelieu.

Dona Maria Pia era dada a achaques, por vezes arrastava as suas damas em missões impossíveis em que ninguém era capaz de se aguentar como as visitas aos hospícios mais pobres da Mitra nos dias e locais mais frios e gélidos que se podia imaginar.Ou as suas fúrias motivadas pela ousadia do Duque de Saldanha que fez um ultimato à Coroa para se manter no governo e que não a impediam de vociferar sem medo:

- Se eu fosse Rei, mandava fusilá-lo agora mesmo!

E as decepções colhidas fatalmente com o tempo no matrimónio Real com a paixão mundana que o Rei teve por uma actriz de teatro de nome Rosa Damasceno que até nem representava mal.

Mas mesmo assim a Ordem reinava, a sociedade mantinha-se e a tradição era preservada.

Para o final a rainha tinha verdadeiros surtos psicóticos, regava as flores do tapete no Palácio de Queluz e soltava grandes ais como a sua antecessora a rainha D.Maria I que acabara mesmo por enlouquecer uns reinados antes.Falava-se da famosa maldição dos Braganças que trazia a desgraça à dinastia desde a restauração após o jugo espanhol em 1640.

Com Dom Carlos tudo pareceu mais difícil ainda, apesar dos esforços diplomáticos e das transigências e das doações do património pessoal do Rei feitas na tentativa de equilibrar as finanças públicas depauperadas.Do Mapa Côr de rosa e do Ultimato inglês.As organizações secretas, os interesses partidários e a corja de oportunistas, parasitas e traidores concorreram certamente para o trágico desfecho do regicídio.

Branca apontava as impressões num caderno, impressionada com a memória fotográfica da velha senhora tão viva, astuta e perspicaz.

No dia seguinte, em sua casa, tentava recompor o puzzle, encaixar as peças, tecer a tapeçaria tornada quase baça com os anos.E voltava afoita no dia seguinte para continuar o livro da sua vida.

A Senhora Marquesa pegava no exacto momento onde se lembrava ter quedado e desenrolava a meada com precisão e lucidez.

O silêncio de Lisboa após o assassinato do Rei e do Princípe Real, as exéquias uma semana depois e a tentativa de erguer a Monarquia com um rapaz de dezoito anos sem preparação e feito rei do dia para a noite, D.Manuel II.

A Rainha Dona Amélia tinha-lhe dito apenas:

- Mataram o meu marido e o meu filho na rua como cães –e, foi quando ela se apercebeu que algo em que tinha sido criada se desvanecia e desaparecera, dando lugar a uma revolta tamanha onde os ímpios, a gente vil como ratazanas esfomeadas num covil saíam dos buracos onde se acoitavam, corriam e vinham sôfregas saciar-se num baquete de sangue.Portugal mergulhava nas trevas e ela assistira a tudo.Chegou a proferir em inglês á laia de mote “I have seen it all”.A decrepitude e a decadência chegavam e ela via com tristeza as árvores do pomar lusitano secarem e morrerem.

Resolveu parar de se lembrar.E disse-o.

-Mas Senhora Marquesa, faltam as memórias das viagens, tantos lugares em que esteve e que visitou.Por exemplo Interläken na Suiça.Faltam as cenas da vida mais privada para darem um toque mais autêntico à narrativa.

A Senhora Marquesa aquiesceu e demoraram mais uns dias a suprir lacunas e a encher episódios.

Depois de muitas sessões, horas perdidas a recordar um mundo passado e desaparecido Branca deu por concluída a recolha de informação, agradeceu o esforço feito pela velha senhora e deitou as mãos à obra.

Dias e noites de trabalho a escrever, corrigir, rescrever, separar por capítulos e ordenar por temas até ficar perfeito para editar.

Mostrou o manuscrito à sua autora que o aprovou, precisando ainda mais as datas, pormenores e novos acontecimentos que lhe tinham escapado.

O livro foi para editar e a primeira edição vendeu-se bem logo num escasso mês, constituindo um êxito numa capa encadernada com o selo da monarquia incrustado na encadernação castanha com letras douradas.A velha Ordem reconheceu o testemunho valioso e tornou-o um símbolo do velho Portugal glorioso que as areias do tempo tinham levado para longe.Os republicanos ferrenhos teceram duras críticas ao revivalismo ou então pura e simplesmente fizeram ponto de honra em ignorar o livro.

A Senhora Marquesa de Rio Maior disse a Branca:

- Fez um trabalho excelente e fico-lhe eternamente agradecida.Já posso morrer em paz.Graças às nossas Memórias parte da História que me foi dada assistir poderá ser lembrada.

O livro esgotou-se completamente e desapareceu das livrarias.Alguns exemplares foram ainda repescados e vendidos a peso de ouro nos alfarrabistas .Décadas mais tarde uma nova edição com o prefácio de uma insigne professora universitária seria publicada e então considerada consensualmente uma obra rara e de culto.

A Marquesa de Rio Maior e a poetisa e autora das Memórias, Branca de Gonta Colaço já não faziam parte do rol dos vivos e não tiveram conhecimento do impacto que o trabalho aturado e dedicado de muitas noites acabara por conquistar no coração de muitos portugueses.

José Manuel Serradas
Enviado por José Manuel Serradas em 14/07/2019
Código do texto: T6695825
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