Pre morten

O velho no leito do hospital acreditava ter perdido praticamente tudo.

O câncer tinha levado seus últimos anos de liberdade.

Os remédios tinham levado o que restava de sua saúde.

A quimioterapia tinha levado seus cabelos e a energia de seus músculos.

Pagar o plano de saúde somado aos custos do hospital tinha levado o que restava de seu patrimônio, e começava a escavar perigosamente o patrimônio de sua filha e netos.

E ficar naquela cama estava levando embora sua vitalidade. Sua sanidade.

Vontade de viver? A narrativa explicará porque o velho no leito do hospital não mais a possuia, e como a havia perdido.

A única coisa que ainda lhe sobrava era a voz. A voz ainda funcionava bem, e ele falava pelos cotovelos, mesmo em um lugar impróprio como era o CTI.

Chamou o médico, rapaz novo, que redundantemente examinava seus exames.

- Tudo bem, seu Dinarte? - o rapaz se aproximou, solícito. - Precisa de alguma coisa?

- Sim, doutor. Preciso que você desligue essa máquina aí do lado.

O médico estranhou. Franziu a testa e seu olhar foi e voltou dos olhos brilhantes do velho para as luzes brilhantes da máquina algumas vezes.

- O senhor sabe para que serve essa máquina? - Perguntou, sorrindo de leve.

- Sei - respondeu o outro, sem se alterar. - É ela que me mantém vivo.

- E por que o senhor quer que eu a desligue, seu Dinarte?

- Porque eu não tenho mais nenhum interesse em ficar vivo.

O médico respirou profundamente e resolveu puxar um banco próximo e sentar. O velho era uma pessoa inteligente, além de um conversador bem lúcido e eloquente que tinha uma porção de ideias próprias. Alguns dos bate-papos que tinha tido com ele haviam levado algumas dezenas de minutos muitas vezes bem agradáveis.

Olhou de volta para o velho e perguntou, sério: - E por que o senhor não tem mais interesse em ficar vivo?

O velho deu aquele meio sorriso seguido daquela olhadela para os lados do tipo "para ver se ninguém mais está escutando", prenúncios de longas argumentações, e...

- Porque esta minha vida não faz mais nenhum sentido, doutor. E o senhor sabe disso. - Começou ele. E fez sinal de silêncio com o indicador na boca, antes do médico poder dizer qualquer coisa.

"Meu dinheiro todo se foi, pagando para que essa máquina funcione. E pagando parte do seu salário." Respirava fundo para buscar energias a cada ponto, e mais brevemente nas vírgulas. "E pagando pela estrutura desse hospital. E pela estrutura do sistema todo."

E respirava duas vezes para organizar seu discurso em parágrafos.

O médico também respirou fundo. Tinha muita estima por aquele paciente, mais culto e intelectualizado que a maioria dos velhos de oitenta e tantos anos, e resolveu, como em outras ocasiões, apreciar o monólogo que certamente viria.

"Venho pagando por este plano de saúde desde que o inventaram, mais de trinta anos atrás. Lá no início, quando eu era mais novo e o plano era até barato. Antes dele, paguei o plano de saúde do governo. E paguei impostos também. E todos os governos, todos os políticos me disseram que o dinheiro dos impostos seria usado na melhoria da minha saúde. Mas só o que vi foi os planos de saúde, os impostos aumentando de preço, e minha saúde sempre piorando e diminuindo."

"Eu finjo que fico dormindo, que não sei de nada do que acontece. Mas sei que minha filha já vendeu o sobrado da família. Por uma bagatela. O lugar onde minha finada esposa nasceu, onde a mãe da minha esposa nasceu. E onde minha filha nasceu. Por uma bagatela. Pra usar o dinheiro pra manter essa máquina ligada e me deixar vivo."

"Eu sei que meu neto tem nojo de vir aqui. Hospitais são lugares nojentos. Por isso ele chora, e a irmã tem que ficar consolando. Não é porque o avô está se desmanchando, fedendo de tanta ferida e cocô nessa cama. Não. O piá chora de nojo desse lugar."

"Porque esse lugar fede a morte."

O velho engoliu e piscou algumas vezes, e ergueu o braço sinalizando que não quando o médico quis se levantar para ajudá-lo.

"Sabe, filho. Eu nunca senti um fedor de morte igual ao desse hospital. Fiquei doente várias vezes na minha vida. Minha mãe me tratava em casa, quando eu era guri, na roça. Me levaram pro hospital umas poucas vezes. O médico consertava o que precisava consertar. Davam um remedinho pra dor, ou pra parar de tossir. E era isso. Não precisava de mais nada."

"Eu até gostava da sopinha de hospital. Tem gente que odeia, mas eu gostava."

"Aí vieram os planos de saúde. Vieram as máquinas, como essa máquina aí. E os médicos novos, como você, que - eu bem o sei - está trabalhando e não tem nada que ver com isso. Mas, no fim das contas, o hospital virou o que é hoje. Você sabe o que é o hospital hoje, filho?"

- Não, seu Dinarte - respondeu o médico, procurando demonstrar doses semelhantes de interesse e ternura através do olhar.

- O hospital, hoje, é a represa dos mortos. - disse o velho, solene. E acomodou as mãos sobre o peito, suspirando e virando o rosto para o teto.

"O hospital continua consertando as pessoas, como antes. Gente nova e criança vem ao hospital, recebe o remédio que precisa receber. Fica bom, ganha alta, pega atestado pra levar pro serviço. E acabou."

"Gente nova. É que nem carro. Conserta. Desamassa a lataria. Troca a peça com defeito. Coloca um pneu novo. Remenda. E o carro volta pra estrada."

"Gente velha como eu. Gente velha com câncer. Com essas doenças que acabam com a gente. A gente funciona que nem carro também, doutor. Carro velho. Caindo aos pedaços. Não tem mais peça pra repôr. Manda pro ferro velho, pra virar sucata."

"Só que gente velha com câncer que nem eu não vira sucata, doutor. Gente velha como eu fica aqui no hospital, pagando plano de saúde. Pagando as coisas que o plano de saúde não cobre. Pagando cada vez mais caro pra ficar vivo. Arruinando a família. Apodrecendo no leito, ouvindo o zunido dessa máquina e vendo a vida passar."

Uma lágrima desceu por um dos olhos do velho, que ergueu um dos indicadores, enfatizando o que diria em seguida.

- Não. Engano meu. O correto é vendo a vida NÃO passar.

Ele virou-se devagar de volta para o médico. - O senhor sabia que a vida é feita pra passar, doutor?

O médico fez que sim com a cabeça.

"Pois é. Mas aqui no hospital de hoje, com essa máquina e o plano de saúde. Aqui a vida é feita pra continuar. Aqui a vida tem de durar tanto quanto possível, para sempre."

"A morte é um fracasso para o plano de saúde. O objetivo do plano de saúde é driblar a morte, senão ele falha, ele não consegue cumprir sua função."

"É por isso que criaram essa máquina, doutor. É por isso que o hospital virou uma represa de mortos, que deixa meu netinho com nojo. É por isso que esse lugar fede a morte. Fede a morte que não chega. Morte incompleta. Necessidade de morrer não atendida. Porque a vida passa, e se vai. É o ciclo da vida. Vida e morte. O corpo nasce, cresce, definha, e morre. Menos aqui. Aqui, doutor, nesse horpital de plano de saúde, com essa máquina... Aqui só se definha. Definha tudo. A vida. As posses. A vontade de viver. Definha para sempre. E se morre cada vez mais devagar. E vai chegar um tempo - pode anotar, doutor - vai chegar um tempo em que não vai se morrer mais. E vai se ficar pagando plano de saúde para sempre. E definhando, e apodrecendo para sempre."

O velho tentou levar a mão enfraquecida para limpar a lágrima grossa que escorreu pelo rosto, mas foi prontamente acudido pelo médico, que usou um lenço que havia ali perto.

O lenço tinha o logotipo do plano de saúde daquele hospital.

O velho agradeceu e sorriu

- É por isso que eu quero que o senhor desligue essa máquina, doutor. - o velho olhou para a máquina e depois deu uma piscadela para o médico. - Mas eu sei que você não vai fazer isso, né, filho?

O médico olhou pro lado sem saber o que dizer.

Uma mão fria e trêmula chegou cobrindo a sua e lhe chamando de volta a atenção.

- Não se preocupe. - Disse o velho, sorrindo. - Um dia alguém vai perceber que a vida é feita pra passar. E alguém vai inventar uma máquina pra saber quando as pessoas precisam morrer. E vai criar um plano de saúde novo, só pras pessoas poderem morrer direito, na hora certa, em paz.

O médico sorriu, e limpou uma de suas próprias lágrimas dessa vez.

Depois cobriu a mão do velho com a sua e disse:

- E eu vou ser o primeiro a pagar por esse plano, seu Dinarte... Eu vou ser o primeiro a pagar.