Epifania

Epifania.

Ninguém sabia quem era Eurico. Ao mesmo tempo todos sabiam quem era o Eurico. Eurico era o que a gente chamava, pelo menos na minha época, de mascote da turma. O ser inofensivo que fazia graça pros outros rirem.

Como começa com todos os personagens assim descritos, não foi ele que buscou essa pecha! Pelo contrário, ele preferiria não ser tão notado pelos outros. Eurico era uma daquelas pessoas que se irmanara à solidão e via nela seu lugar de segurança. Pensava, à moda dos puritanos do século XVII, que quanto mais próximo da luz, mais manchas apareceriam. Porém, ele tinha um jeito sui generis de ser. Eu sei que todos são diferentes e que ninguém é igual a ninguém e essas coisas todas. Talvez eu deva corrigir, Eurico não tinha amigos. Não tinha um grupo que lhe desse uma solidez dentro da sociologia de sua escola. E como toda solidão é subversiva, ele era o diferentão.

Para piorar, ele também não era nenhum gênio, ou tinha um pensamento crítico apurado, nem nada disso. A sua mediocridade muitas vezes beirava a ingenuidade. Ocasião de várias vezes, quando inquirido por alguns professores, errar ou admitir que não sabia da resposta. Piada feita. Tudo isso somado à uma certa despreocupação estética fez dele o “mascote da turma”.

De mascote ao bullyng faltou pouco. Este se personificava na figura de Fabiano. Moleque mais velho e que tinha parentes envolvidos com atividades ilícitas e que usava dessa aura para amedrontar as pessoas. Era o machão da classe. Até que um dia entrou uma barata voadora na sala de aula e esta acabou pousando na blusa dele. Não sei como descrever bem a cena, mas o certo é que ele gritou. Gritou, se esperneou até que a barata voou e alguém acabou matando. Quando se recompôs do seu surto histérico percebeu que todos estavam rindo e, dentre eles, Eurico.

Aquilo despertara nele uma raiva tão descabida! De todas as risadas, a dele era a mais indigna. Porque, quem era aquele “bosta”? Ele não sabia de quem ele estava rindo não? E desde esse dia em diante passou a persegui-lo com tropeções, zombarias, chicletes na cadeira, e todas as artimanhas que tornassem sua vida na sala de aula pior. E se Eurico ousasse dizer algo, se aproveitava do seu porte físico para se impor. E como o bullyng se aproveita do silêncio e da indiferença, situação se perpetuava. E se Eurico já era irmanado à solidão, essa situação o levou a isolar-se. Passou a ser uma sombra não só na sua turma, mas também na escola. Só o nome na chamada evocava sua existência e as provocações de Fabiano. E nos trabalhos em grupo, os obrigatoriamente em grupo, ele se contentava com poucas falas. Terminava e voltava para o seu lugar.

Certo dia um dos alunos levou um violão pra sala de aula. Conversava que havia iniciado as aulas e que aos poucos estava aprendendo e tocou uma dessas canções em voga na época e que só precisava de poucos acordes maiores, três. Mais pela canção do que pela execução ou voz em si, as pessoas se ajuntaram ao seu redor e cantaram juntamente. E no meio dessas pessoas estava o Eurico. Ao fim da canção até que se tentou começar outra música, mas, como se disse acima, o rapaz ainda estava aprendendo e então ele decidiu guardar o violão. Quando se preparava para fazê-lo, ouviu-se a voz de Eurico, baixa como sempre:

- Me empresta seu violão, Eduardo? – que era o nome do moleque.

- Você sabe tocar? – Perguntou o outro

- Um pouco... – respondeu Eurico já não tão certo de sua iniciativa.

Eduardo olhou com um pouco de desconfiança. Todos tinham se acostumado a lidar com a quase inexistência dele. Ser inquirido por ele era se lembrar que, apesar de parecer que não, ele existia sim. E isso, de certa forma, te coloca contra a parede. Talvez se ele dissesse não, o máximo que iria ocorrer seria Eurico voltar para o seu canto e ficar lá. Mas por que ele haveria de fazer isso? Ele poderia alegar um ciúme ao violão novinho. Mas pra quê? Se no final ele não soubesse tocar... bem, seria o Eurico.

- Beleza! – Respondeu então – manda ver! – E estendeu a mão para ele.

Eurico, porém, pediu pra ele esperar, pegou a cadeira de professor, que não tinha encosto para escrever e trouxe. Pegou sua mochila, colocou no chão e pôs a sua perna esquerda encima dela. Quando pegou o violão, finalmente, o apoiou na sua perna esquerda. Diante da estranheza alguns alunos começaram rir. Alguns cochichos tais como: “sabe nem pegar no violão”, “pra que essa frescura toda?”. Quando o Eurico parecia que ia começar, deu um acorde e parou. Desta vez todos riram alto. Eduardo olhou com pena e impaciência:

- E aí? Só isso?

- É que tá meio desafinado... posso afinar?

- Você que manda, meu velho!

O trabalho tomou uns dois minutos e as pessoas ao redor se dispersaram pelo cansaço. Era o Eurico, não é, gente! Até mesmo Eduardo já estava conversando com outras pessoas quando de repente se ouve uma melodia. Baixinha... não estridente.

Eurico começou a tocar... a tocar... a tocar... e tocava de uma forma delicada. Singela. As notas surgiam dedilhadas. Os acordes e os baixos se sucediam sem pressa. Não cantava. Só tocava.

Aos poucos as pessoas pararam pra vê-lo. Eurico estava tocando uma peça do Villa Lobos. Um estudo. E na sua imersão ele já havia fechado os olhos. Só se preocupava em tocar. Nem se dera conta que a sala já havia se silenciado por sua causa. Fabiana, que também estava no local, tentou em algum momento perturbar o clima:

- Cadê? Vai cantar não?

Reclamaram:

- Meu irmão, cala a boca! Bicho chato do caramba!

Teve que deixar quieto.

E Eurico tocava. E tocava bem.

O professor entrou na sala estranhando aquele silêncio. Mas também foi envolvido com aquela aura. E juntou-se ao grupo dos que apreciavam. Conhecia aquela peça, aquela postura. Era violão clássico. Lembrou do pai. Se emocionou...

Quando Eurico terminou a execução. Abriu os olhos. E viu que ninguém riu dele. O professor, com os olhos vermelhos puxou uma salva de palmas que foi correspondida por todos na sala – Fabiano estava lá no fundo mexendo no celular. Eurico ficou corado, mas sorriu. Entregou o violão pra Eduardo que disse:

- Mandou bem, cara! Parabéns.

E apertou a mão dele.

Foi um momento de superação? Não! Naquele momento estava mais para uma suspensão parcial da realidade. Uma epifania. A habilidade técnica não muda o contexto em volta, mas quem sabe... Quem sabe não foi o momento em que o Espírito agitou a face das águas na escuridão do abismo e que logo se ouviria o “haja luz!”. E então das sombras surgiria um Eurico que ninguém havia notado. Quem sabe...

Pode ser.