Direitos no Coletivo

DH entrou no ônibus e, como de costume, sentou-se no assento preferencial. Ele era um senhor de idade. Vestia social e usava óculos de grau. Tinha a mania de observar todos os passageiros que diariamente tomavam aquele veículo.

Na parada seguinte, uma Mulher Cega entrou. Ela trazia consigo uma balança. Usava também uma bengala para se locomover. Curiosamente, aquela bengala era muito semelhante a uma espada de um só gume. A Mulher Cega se sentou ao lado de DH. Ambos seguiram viajem em silêncio.

Mais uma parada. Um grupo de pessoas entrou no ônibus: um Casal de héteros com uma Criança de colo, uma Estudante negra carregando um livro de Direito, uma Prostituta que mastigava um chiclete, um Operário, um recente Casal de homossexuais, uma Jornalista prolífica, um Muçulmano, um Skinhead e, rompendo o hábito da estabelecida rotina, um Empresário “elegante” também fazia parte daquele grupo. Esse Empresário estava com o celular colado ao ouvido. Ele esbravejava com alguém do outro lado da linha. Estava muito irritado, pois seu carro havia quebrado e ele não conseguira um Uber para socorrê-lo.

Durante o trajeto, a Estudante negra fazia questão de manter seus olhos sobre o livro de Direito. Em breve haveria uma prova na faculdade, o ônibus era um bom lugar para estudar. O Casal de homossexuais estava um pouco apreensivo perante os olhares pouco amigáveis do Skinhead. Mas, ao perceber o desconforto do Casal, DH tratou de lançar um olhar de reprovação na direção do rapaz de cabeça raspada. Essa atitude trouxe conforto ao Casal, que então passou a trocar carícias e selinhos.

A Criança de colo começou a chorar. Seu Pai, um homem machista, se recusava a auxiliar a Mãe, que estava exausta e descabelada, com os cuidados com a criança. DH se levantou e foi sussurrar algo no ouvido do Pai, que após ouvir o conselho do sábio senhor, pegou a criança dos braços da esposa e se pôs a ninar o pequeno filho. A mulher conseguiu, enfim, se recompor.

A Jornalista estava sentada ao lado da Prostituta. As duas conversavam muito. Talvez o dia a dia daquela mulher da noite pudesse ser interessante o bastante para render uma matéria para algum portal. A Jornalista sabia disso e queria aproveitar a oportunidade.

O Muçulmano viajava calado. O Operário, descontraído, assoviava e olhava pela janela. Já o Empresário, que era herdeiro de uma grande fortuna, continuava falando ao celular, não fazendo a mínima questão de esconder o mau humor.

Outra parada e, feito uma visita indesejada durante uma reunião familiar, algo findou com o clima amistoso. A Estudante já não compreendia mais os complexos parágrafos do livro. As carícias entre os homossexuais resumiram-se em um forte e discreto aperto de mãos. O Skinhead desfez de sua cara de malvado e acessou um aplicativo do smartphone. A Criança, que chorava, engoliu o choro e ganhou novamente o colo da Mãe, que passou a sussurrar cânticos em seu ouvido. A Jornalista deixou de lado a conversa e acessou a internet móvel através do seu notebook. A Prostituta engoliu o chiclete. O Muçulmano manteve a mesma postura. O Operário deixou de assoviar e se concentrou ainda mais na paisagem urbana. E o Empresário desligou o celular, fingindo que o sinal havia caído.

O Motivo desta comoção era um homem de um metro e oitenta e cinco de altura, cara de poucos amigos, vestindo roupas que mais pareciam panos de chão e expondo os braços musculosos cobertos por tatuagens que faziam alusão ao mundo circense. Um Criminoso em liberdade condicional acabara de entrar no ônibus.

O Motorista liberou a passagem pela roleta. DH cumprimentou o Criminoso como fizera com todos os outros passageiros. Ele não retribuiu o gesto e sentou-se em um assento localizado no fundo do veículo. O ônibus voltou a trafegar pelas ruas da cidade.

Depois de alguns minutos de silêncio e aparente calmaria, o que quase todos previam acabou mesmo acontecendo: o Criminoso sacou uma arma e a apontou para cima.

— Todo mundo coloca a mão na cabeça!!!

Gritos seguidos por sussurros tomaram conta do veículo. Todos os passageiros seguiram as ordens do Criminoso, menos DH e a Mulher Cega. Ambos permaneceram com as mesmas posturas. O Criminoso não se incomodou nem um pouco com isso.

O Motorista diminuiu a velocidade.

— Segue a linha, Motorista, segue a linha! — disse o Criminoso, apontando a arma na direção do ponto imaginário onde o Motorista poderia estar.

O Motorista atendeu às preces do Criminoso e acelerou. O ônibus voltou a trafegar na velocidade normal, algo entre 1675 e 1700 Km/h.

— Agora me ouçam com atenção: cada um de vocês vai me entregar o que tiver de valor, entenderam?!

O Operário entregou a carteira com alguns míseros trocados. O Skinhead entregou o smartphone. O Casal de homossexuais entregou um pouco de dinheiro e duas alianças de ouro. A Jornalista entregou o notebook. A Prostituta tentou seduzir o Criminoso com um sorriso típico da profissão, mas não obteve sucesso. O que lhe restou foi entregar todo o faturamento da noite anterior. O Muçulmano resistia, mas ao ter a arma apontada para a sua cabeça, optou por entregar seu dinheiro. A Estudante disse que não tinha nada de valor e, talvez por ser negra, acabou sendo milagrosamente poupada. O Criminoso, evidentemente, não fez questão do livro de Direito.

DH e a Mulher Cega não foram requisitados pelo Criminoso. A Criança de colo começou a chorar novamente. A Mãe tratou de acalmá-la. O Pai entregou tudo o que tinha na carteira.

Todos os passageiros requisitados entregaram os pertences de valor. Então, por fim, era a vez do Empresário.

— E aí, bacana? O que tu tem de valor?

O Empresário entregou o celular.

— Tá de brincadeira, cumpade?

— Não tenho mais nada aqui.

O Criminoso esboçou um sorriso irônico e colocou a arma na cabeça do homem bem-sucedido.

— Arregaça as mangas e me dá esse relógio, parceiro!

— Tá, tá, ok — disse o Empresário, tirando o Rolex.

— Não se esquece da carteira.

O Empresário também entregou a carteira.

Uma freada brusca! O Criminoso perdeu o equilíbrio. Tomado pela raiva, pelo inconformismo e pela revolta digna do seu caráter, o Empresário aproveitou o momento oportuno e tomou a arma do Criminoso. Logo em seguida, sem um pingo de piedade, ele o executou com dois tiros certeiros. Um criminoso a menos no mundo!

Os passageiros ficaram horrorizados e, por que não, aliviados. DH se ajoelhou ao lado do corpo do Criminoso, como se ainda houvesse algo que pudesse ser feito por sua vida.

— Isso tudo é culpa sua, imprestável! — disse o Empresário, olhando nos olhos de DH.

DH parecia estar muito triste com o que acabara de acontecer. O Empresário, abalado, jogou a arma no chão e foi se sentar ao lado da Mulher Cega. Ela largou a balança e passou a acariciar a cabeça do “assassino?”, que se sentiu melhor naquele momento.

O Motorista seguiu em frente e, apesar de ser invisível para muitos, permaneceu o tempo todo em vigilância. (FIM)

Renato A
Enviado por Renato A em 31/10/2019
Reeditado em 31/10/2019
Código do texto: T6784133
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