*Velhos cabarés da Paissandu

Os velhos cabarés da Paissandu

Reporto-me ao meio da década de 60, quando os cabarés da Rua Paissandu já demonstravam sua decadência.

Houve uma época chamada de ouro, quinze ou vinte anos antes, especialmente nas festas de carnaval, quando os mais abastados homens da cidade deixavam, sorrateiros, o Clube dos Diários e River e iam se esbaldar nos braços de belas mulheres.

Por esse tempo, o espaço dançante do River Atlético Clube funcionava na

Rua Lisandro Nogueira, mais conhecida como Rua da Glória, nas proximidades da Rua Treze de Maio, e o Clube dos Diários (hoje espaço cultural), no mesmo local: Rua David Caldas com Álvaro Mendes.

Os cabarés chamavam a atenção pelas placas luminosas e os nomes interessantes, como Boite Alabama, Estrela, Amambaí, Hollywood. Eram casarões muito mal cuidados. Se as fachadas não apresentavam grandes atrativos, o interior era ainda pior. Nos apartamentos das meninas, via-se apenas uma cama de casal com colchão de palha, uma mesinha com cosméticos baratos, um caco de espelho, latas de talco Gessy (muitas delas vazias, servindo apenas de ornamentação), uma “quartinha” de barro (moringa) com água e uma bacia esmaltada para asseio íntimo delas e dos clientes.

Guarda-roupas era artigo dos nobres. Os vestidos eram dependurados em cabides de talo de coco, encostados às paredes, expostos à poeira ou numa mala tosca de tábuas. Banheiro interno, por sua vez, era luxo totalmente desconhecido. As moças tomavam banho num cercadinho de talos de buritis, lá no fundo do quintal, onde não poucas vezes, alguém por certo estaria gretando, pelo lado das oficinas de automóveis, tentando vê-las nuas.

A Rua Paissandu açambarcava dois mundos opostos. Da Rua 24 de Janeiro à Rua Firmino Pires, funcionavam alguns poucos bares e restaurantes, sendo o Bar Imperial o mais conhecido. Havia também comércio variado e algumas residências. Da Rua Firmino Pires ao rio Parnaíba era a zona do baixo meretrício, entremeada por algumas oficinas de automóveis e tornearias mecânicas. De um lado, o funcionamento era das 7h30m às 11h30m e das 13h30m 17h30m e do outro lado, das 19h até o amanhecer. De sorte que um não atrapalhava o outro, porque enquanto um dos lados trabalhava, o outro dormia.

Por algum tempo, eu andei bastante por aqueles caminhos ditos “da perdição”, mas que, na verdade, muitos se descobriam lá. As mulheres eram chamadas de “vida fácil” apenas por ironia, pois de fácil a vida delas não tinha “bissulutamente” nada. Os cabarés, mesmo com nomes de pompa, eram chamados de forma pejorativa, que nem me cabe aqui citar, por respeito àquelas a quem ninguém respeitava.

Onde circulam livremente bebidas alcoólicas, prostitutas, vendedores ambulantes, gigolôs, homens desocupados e cafetinas, costuma ser um ambiente minado, especialmente numa época em que o sujeito mais comportado era aquele que portava um canivete Corneta. Ainda assim, os registros de ocorrências policiais eram somente de bêbados fazendo arruaças. Raramente e muito raramente, acontecia um homicídio e, quando isso ocorria, era coisa pra se comentar por meses a fio. Eu, particularmente, não me recordo de caso algum.

Eu, estudante ginasiano, liso que nem muçum, sem uma pataca furada no

bolso da lambança, com medo da polícia e de um tal fiscal de menores, estava impedido de frequentar aquele ambiente durante a noite. Fora isso, ainda me assustava sobremaneira a possibilidade de contrair uma “doença do mundo”, que, desgraçadamente, grassava naqueles lugares.

Aparecia por lá quase sempre ao meio dia, mas não para os motivos que alguém podia supor, vendo-me adentrar naquele ambiente.

Eu gostava de conversar com as moças, conquistara confiança delas e, dissimuladamente, examinar suas vidas, saber de onde elas eram, a idade, o nome e como tinham ido parar ali.

Ao chegar em casa, eu passava tudo para um caderno escolar, com os “nomes de guerra” de cada uma delas. Confesso-lhes que o fazia sem finalidade alguma. Muitos desses nomes eram pronunciados erradamente, pois nem elas sabiam escrever. Eram nomes tirados das telas dos cinemas que ganhavam corpo e vida naquelas tristes personagens.

Até que, um dia, como se diz na gíria, deu-me um estalo! De repente, notei que a história de uma era a mesma de tantas outras. O mesmo roteiro, do começo ao fim, as mesmas máscaras, maquiagens, o mesmo drama e algumas tragédias. Vi que eu tinha em mãos um recenseamento que nem o I.B.G.E. dispunha e procurei aprofundar-me ainda mais no assunto.

Na minha conclusão hoje, havia um “empate técnico”, sem probabilidade

de erros para mais, nem para menos. 52% daquelas sofridas mulheres, eram constituídas de mocinhas que se apaixonaram por um rapaz bonitinho, boa pinta, mas canalha, que lhes deu as costas, quando elas engravidaram. Os pais, por sua vez, sentindo-se traídos e com suas honras manchadas, expulsaram-nas de casa. Desse modo, sem escolaridade, sem profissão, sem o acolhimento de uma assistência social pífia ou inexistente, elas não viram outra saída que não fosse a prostituição. Muitas dessas mulheres eram oriundas do interior.

Já as outras 48% se constituíam de mulheres legalmente casadas, que viveram algum tempo com indivíduos promíscuos, violentos, sem o mínimo de compromisso familiar e que acabaram sendo abandonadas na terceira gestação.

É forçoso lembrar que, até então, não existia o divórcio e a mulher desquitada trazia na testa um letreiro de má companhia. Tal como as anteriores, sem escolaridade e profissão, não tiveram outra alternativa, se não deixar os filhos com os avós, para irem cair nas mãos de alguma cafetina espertalhona, que as exploravam por qualquer preço ou por preço algum.

Como era sabido, muitos desses clientes saíam sem pagar pelos serviços. Mas esses clientes também pagavam um preço alto por suas velhacarias e eram tachados de “chumbistas” no meio de todos os presentes. Chumbista era aquele que passava chumbo! Esses serviços eram, de tal forma, desprezíveis, que não havia preços antes combinados, ficando por conta do cliente gratificar, segundo sua bílis.

Todas eram mulheres sofridas, com um currículo triste. “Amadas” durante a noite e sumariamente evitadas durante o dia. Pertenciam à classe das pecadoras empedernidas, irrecuperáveis, acima apenas da estirpe dos bandidos. Exploradas por quem lhe davam hospedagem e aviltadas em sua dignidade, já que nem podiam, ao menos, recusar clientes, mesmo que estes fossem bêbados, desdentados, insolentes ou nauseabundos. Além disso, elas eram forçadas a consumirem bebidas alcoólicas, independentemente de sua vontade ou estado físico, para que a casa tivesse lucro.

A população daquelas boites era constituída de mulheres alquebradas, acima dos cinquenta anos, que já não despertavam interesse algum aos visitantes.

“Carne nova” naqueles abatedouros era coisa raríssima. As mais idosas se transformavam em ajudantes de cozinha, lavadeiras e engomadeiras de roupas para as mais novas, exatamente por não terem como viver fora dali. Suas pouquíssimas alegrias resumiam-se em participar do corso carnavalesco, sobre a carroceria de um caminhão, pela Avenida Frei Serafim, uma vez ao ano.

Morriam quase sempre infectadas de sífilis e na pobreza extrema. Ali o destino era igualmente cruel com Karenina, Shirley, Katherine ou Chica. Aquilo

era sim, um mundo de desesperançadas.

Hoje, quando olho para trás, vejo muito bem esplanada a frase de Winston

Churchill: “Se você estiver atravessando o inferno, não pare, continue andando.”

Lamentavelmente, aquele era um inferno onde os habitantes caminhavam em círculo, debatendo-se com os mesmos diabos a cada esquina e tão familiarizados que até trocavam sorrisos entre si.

Era-me evidente que nenhuma sairia daquela vida. Encontrar quem lhes desse a mão, ter uma casa onde pudessem dormir na hora certa e acordar com a consciência tranquila era algo fora de cogitação.

Agora pasmem! Mesmo com uma vida tão deprimente, muitas gostavam daquela vida e como gostavam! O suprassumo do absurdo era saber que ainda assim, muitas meninas da periferia admiravam a forma dita elegante como aquelas condenadas se vestiam.

Decaindo degrau a degrau, esses cabarés acabaram sucumbindo pela força do mercado paralelo e pela concorrência dos randevus (do francês rendez-vous) ou inferninhos, hoje conhecidos como motéis.

Os casarões foram lentamente abocanhados por empresários que, em boa hora, transformaram a zona do meretrício em zona comercial. A Paissandu, tal como era, acabou e espero que sem deixar saudades.

Hoje, não é mais comum ver pais preferindo ver as filhas nos cabarés, vivendo da prostituição. O mundo ficou mais tolerante ou mais permissivo no sentido anárquico.

De qualquer forma, a indulgência é, antes de tudo, uma maneira de amar.