O CARREGADOR

Minha família é minha. E esse adjetivo lhe cai bem quando se trata do sangue Barbosa.

Final de ano chegando, o desemprego sequer quis ir embora, e a diversão é aproveitar a misericórdia da vizinha em ceder o wi-fi para navegarmos sem sair de casa.

Unidos em todos os ventos e chuvas, minha mãe sempre nos educou de modo cristão:

"Amai-vos uns aos outros como eu vos amei. Mesmo que pra isso eu tenha que dar uns croques. Não deixei de amar."

Meu irmão mais velho sempre foi o mais esforçado, mas também o mais rígido. Substituiu muito bem meu pai no quesito "homem da casa". Já eu, enquanto cresço, desenvolvo habilidades culinárias e domésticas.

Se não fosse meus momentos de ócio, seria difícil fazer arte na casa. Lembro que sempre esquecia de fechar a tampa do vaso, ou de dar descarga após usá-lo. Santo celular que me distraía. Cúmplice eterno dos meus desleixos. Apanhar? A idade não deixava.

Só que tinha algo que doía mais que chinelo havaiana voando em minha direção: o olhar severo da minha mãe e seu constante comparar:

"Seu irmão nunca me deu esse trabalho."

Amava todos. E ainda amo.

Um dia aconteceu que minha mãe chegou do serviço cansada, como sempre dizia que estava, mesmo que ainda preferisse lavar todas as roupas à mão ao invés de dormir uns trinta minutos no sofá, alegando que "não tava morta, não".

Eu escrevia no meu celular. Passei tanto tempo nele que esqueci do tempo. Meu irmão estava no dele curtindo suas músicas e vídeos preferidos.

"Bênção, mãe!" Dissemos ambos à ela.

Minha mãe nem sequer nos cumprimentou. Eu só ouvia o pisar forte de um lado para o outro. Até ela entrar no quarto bufando:

"Cadê o carregador do meu celular?"

Na mais tranquila calma, respondi:

"Tá no quarto, mãe."

"Que quarto, moleque? Eu deixei ele na gaveta da sala antes de ir trabalhar e agora não achei ele. Você não tá usando não?"

"Oxente, mãe. Eu não."

Ela sequer olhou pro meu irmão, que nem a cabeça ergueu.

Esqueci de contar. Todos os celulares de casa são da mesma marca. Sendo assim, o mesmo carregador servia pra todos.

"Menino, me ajuda a procurar, vai."

Aturdido procurei e nada. Deixei o meu carregador com minha mãe. Negociamos horário: eu de dia e ela de noite.

Passou um mês e nada de acharmos aquele carregador. A casa agora só tinha dois carregadores para três celulares.

Meu irmão saiu a noite. Quando voltou, eu ainda estava acordado. Mãe dormia. Ele foi pro quarto dele e tombou na cama também.

Na manhã seguinte, onde nossa mãe já saíra pro trabalho, meu irmão me acorda assustado:

"Maninho. Tu viu meu carregador?"

Ainda zonzo abri os olhos e devo ter falado as seguintes palavras:

"Não sei, mano. Não tá na sua mochila?"

Ele disse que tinha procurado por todo o canto e não achou. Questionei se não tinha saído com ele a noite, mas nada. Deixou em casa.

"Faz o seguinte, mano. Usa o meu. Tá ali na estante."

"Não é esse o problema" ele apontou. "O problema é que tô achando que a mãe levou o meu pro trabalho."

"E como sabe que era o seu?"

"O seu tinha um risco de caneta azul, não tinha?"

"Tinha."

"O meu eu fiz um nó nele e pintei de roxo. Só que agora não tem nenhum aqui."

Ajudei-o a procurar, mas mesmo assim não encontramos. Ele ficou uma fera esperando minha mãe chegar. Enquanto isso nós revezávamos o meu.

Ao chegar, minha mãe foi interrogada por meu irmão sobre o famigerado carregador. Ela nada sabia, apenas citou o meu e que meu irmão deveria saber onde guardava as próprias coisas.

Ficamos por um bom tempo sem utilizar muito o celular, já que com um carregador pra cada, o jeito era economizar.

Incrível como uma desgraça pra pobre é pouco. Após cinco semanas, mais um carregador se perdeu. Dessa vez o meu.

Aí o pandemônio se instalou. Ninguém mais possuía carregador e minha mãe e irmão ficaram cada vez mais irritadiços.

Procuramos como a arca perdida. Reviramos a casa. Nada de achar.

Meu celular passou mais tempo desligado. Mexi menos nele. Tive que excluir meus jogos.

Meu irmão saía mais com os amigos. Provavelmente carregava o celular na casa deles.

Minha mãe utilizava o da amiga no trabalho.

Num domingo, bem cedinho, acabou a energia na vila, e a internet da vizinha ficou desligada até a luz voltar.

Meu irmão ficava no quarto. Minha mãe na cozinha. Eu na sala.

O tempo foi passando e nada do carro da companhia elétrica chegar na rua. E ele já tinha consertado dois quarteirões. Só faltava o nosso.

Pude ouvir alguém resmungando porque a bateria acabou. Era minha mãe.

Tempos depois, o do meu irmão também se apagou, mesmo na máxima economia de energia.

Nenhum celular. Escuro. Nada pra fazer desde manhã.

Pra piorar, começou a chover forte e o carro da companhia elétrica não poderia trabalhar naquelas condições.

Minha casa era só silêncio. Cada um num cômodo.

Meu irmão perguntou se meu celular ainda tinha um pouco de bateria. Minha mãe fez a mesma pergunta. Eu disse que não, mas duvidaram do que eu dizia e insistiram. Ao ponto de mandar segurar o botão de ligar até a bateria funcionar. É um "esquema" que viram por aí.

Nada.

Nisso, minha mãe e irmão começaram a discutir. Fui citado na briga sem nem ter me envolvido. Ninguém sabia onde se encontrava um carregador sequer.

O tom de voz dos dois aumentava a cada frase:

"É bem seu irmão que varreu o carregador pro lixo. Você também nem pra cuidar dele direito." Dizia minha mãe.

"A senhora que deve ter esquecido o meu no serviço. Vai ver aquela amiga da senhora roubou. Nunca vou terminar de baixar o jogo por causa disso."

"Como se eu nunca levei nada teu, menino? Eu trabalho pra comprar minhas coisas e mesmo assim vocês perdem tudo. Vou perder minhas novelas e as receitas de sobremesa."

A luz não voltou. Nada dos carregadores. Briga.

Ficamos todos sem falar um com o outro. Nada pra fazer.

A previsão da energia voltar será amanhã. Enquanto isso, estou no meu quarto.

Meu plano deu errado. Amanhã devolvo os carregadores. Minha família precisa recarregar.

Mas e o que já carregaram de nós?

Leandro Severo da Silva
Enviado por Leandro Severo da Silva em 19/12/2019
Reeditado em 19/12/2019
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