Infância roubada

São 5 horas da manhã e o sol ainda não acordou, mas eu estou de pé. É preciso estar de pé, pois logo estarei na casa de Dona Rosinha. Sempre levanto antes de todos. Mamãe está dormindo, papai também, meus irmãos já estão na lida, eles acordam mais cedo que eu. Eu ainda estou com sono, mas preciso preparar o café, senão papai reclama. Ele odeia acordar e não vê o café pronto e o pão quente na mesa.

A minha família é muito feliz, todos aqui têm emprego e a gente vive conforme Deus quer. Na casa de Rosinha, onde eu trabalho desde os 7 anos de idade, sou muito bem tratada. Ela me paga R$ 20 por mês para eu comprar as minhas coisas e ainda me dá roupa de sua filha Adriana, que tem a mesma idade que eu, só que ela não trabalha, apenas estuda e brinca, não faz nada para ajudar a mãe. Minha mãe diz que sou mais esperta que ela, pois eu tenho apenas 10 anos e já sei cozinhar, passar, lavar, limpar a casa e até fazer bolos e pudins. No aniversário de Adriana eu fiz quase tudo, até ajudei a confeitar a torta, que ficou linda. Eu nunca tive uma torta no meu aniversário e nem uma festa como a de Adriana, mas eu não tenho inveja dela. Mamãe diz que inveja é coisa feia e que as pessoas são diferentes e precisam se conformar com seu destino, eu me conformo com o meu, mas meus dois irmãos, não.

Quando chego em casa do trabalho, depois das 6 horas da tarde, mamãe me abraça e diz que tem muito orgulho de mim, eu fico feliz. Meus irmãos chegam do trabalho mais tarde que eu e mesmo assim ainda conseguem fôlego para brincar de bola, mamãe não briga com eles, pois a noite é o único horário que eles tem para brincar. Eu não sinto falta disso, a gente não pode sentir falta do que nunca teve. Eu sempre chego da casa de Dona Rosinha muito cansada e só penso em dormir. Conto às horas que eu tenho para ficar na cama, eu adoro dormir, mas só posso me dar esse luxo aos domingos, quando eu posso acordar depois das 9 horas. Minha mãe me acorda com o beijo carinhoso e me leva o café na cama. Também é o único dia que eu não faço café para eles.

Meu pai trabalha na feira vendendo frutas. Meus irmãos compram a mercadoria no centro de abastecimento, por isso eles precisam acordar mais cedo que eu. Minha mãe faz a mesma coisa que eu, só que em um restaurante popular, que só abre às 9 horas, por isso ela pode acordar mais tarde que eu também. Mesmo com todos trabalhando a nossa renda não chega a 250 reais.

A cidade que a gente mora é pequena e tem apenas duas praças, uma igreja, um hotel bonito e uma orla, onde eu adoro ficar olhando o mar e a prefeitura, onde a maioria das pessoas que eu conheço trabalha. Minha mãe sonha em trabalhar na Prefeitura.

Temos uma vida pacata, sem muitas aventuras, mas é normal, muita gente ali vivi como nós.

A única coisa que nos tira da rotina são os assaltos que de vez em quando acontece na praça, mas eu não tenho medo, conheço todos os assaltantes, eles são meus amigos e respeitam crianças.

Um dia quando estava voltando da casa de Dona Rosinha vi uma moça na praça, ela deveria ser turista, pois eu nunca a vi pela cidade. De repente um desses meus amigos assaltantes se aproximou dela e puxou a sua bolsa e saiu correndo. A moça ficou sem ação, baixou a cabeça, sentou no banco da praça e começou a chorar sem parar. Eu me aproximei e ela me contou que tudo que tinha estava naquela bolsa que foi roubada.
- Eu fugi de casa e tudo que eu tinha estava naquela bolsa que me levaram. E agora o que vou fazer?
- Calma moça, eu vou ver se posso te ajudar, conheço esses meninos que roubam, vou pedir para eles te devolverem nem que seja um pouquinho do que te levaram.
- Você os conhece? Então venha comigo, vamos chamar a polícia.
- Não adianta moça, a cidade está sem delegado há mais de seis meses. Me espere aqui, eu volto.
- Eu vou esperar você.
Quando eu estava me afastando, ela gritou:
- Hei? Qual é o seu nome?
Eu respondi de longe:
- Mariazinha.
- Boa sorte Mariazinha. Mariazinha, que nome!
Eu fui correndo até a casa de Everaldo, o menino que assaltou a moça. Eu contei para ele que ela havia fugido de casa e estava sem dinheiro para nada. Ele não me deu ouvidos e mandou eu ir embora. Voltei para a praça triste. Como ia contar à moça que eu não havia conseguido nada, ela vai pensar que eu não tenho prestigio com os assaltantes da cidade. Então, antes de seguir, parei em casa e contei a minha mãe tudo que havia acontecido. Ela me deu R$ 2 para dar a moça. Eu segui para a praça alegre por ter conseguido o dinheiro.
- Oi moça.
- Você conseguiu recuperar meu dinheiro?
- Consegui, mas só um pouco, tome. Entreguei os R$ 2 em sua mão e ela me olhou assustada.
- Dois reais? Você conseguiu apenas 2 reais? O que eu vou fazer com 2 reais? Eu tinha mais de mil reais naquela bolsa.
- O que? Mais de quanto?
- Mais de mil reais.
- E quanto é isso? É mais de 100 é?
- Como mais de 100? Você não sabe o que são mil reais?
- Sei, claro que sei. Falei, mas não sabia, eu só sabia quanto era 100 reais, porque era quanto a mamãe ganhava no restaurante.
- E agora o que vou fazer? Como vou sair daqui dessa cidade?
- E por que a senhora quer sair daqui? Não gostou não?
- Não é isso menina, é que eu só parei aqui para ver o rio, meu destino era seguir para Cachoeira do Amanhã, aonde iria me encontrar com Roberto, meu namorado.
- Poxa, e agora?
- E agora? O que eu vou fazer? Não tenho onde dormir, nem dinheiro para comer, apenas esses dois reais.
- Mais dois reais dá para a senhora comer. No restaurante da Dona Mundica tem comida até de R$1,50. Se quiser, eu te levo lá.
- Obrigada Mariazinha, mas eu preciso pensar nas outras coisas.
- Que coisa moça?
- Você é muito criança, não entende, mas obrigada por ter tentado me ajudar. Mas tarde eu vou procurar o restaurante dessa tal Dona Mundica.
- Olhe, não fique triste, a gente não pode mandar no nosso destino. Vai ver Deus quer que a senhora fique aqui.
- Como ficar aqui, só se eu ficar aqui nessa praça, que só tem dois bancos. Maldita hora que decidi descer para ver o mar. Deveria ter seguido viagem.
- A culpa é do Prefeito moça, foi ele quem mandou fazer uns papéis para espalhar na capital dizendo que o mar daqui era lindo. A foto do papel trouxe muita gente estranha pra cá. Ela me olhou surpresa e eu logo corrigi. – Mas a senhora não é estranha não, viu?
- Você é muito engraçada e fala como um adulto.
- É, eu sou quase uma adulta, mas eu preciso ir, pois são quase 9 horas e tenho que acordar cedo para trabalhar. A moça me olhou espantada e interrogou:
- Você trabalha?
- Claro, por que?
- Mas quantos anos você tem?
- Vou fazer 11 daqui a sete meses.
- E como pode alguém explorar uma criança como você?
- Mais eu não sou explorada não, Dona Rosinha me trata muito bem na sua casa.
- Quem é Dona Rosinha?
- É minha patroa. A senhora tem patroa?
- Não, nunca precisei ter patroa, eu sou muito moça para trabalhar.
- Moça, a senhora? Ah! Ah! Ah! Ah!
- O que está rindo?
- É que a senhora não é moça não.
- Como não sou, sou sim. Eu tenho apenas 17 anos, viu?
- Mesmo assim, eu tenho 10 e trabalho. A minha vizinha Rita, tem 14 anos e tem dois filhos. Ela trabalha desde os 9 anos viu?
- Que absurdo!
- A senhora nunca viu meninas da minha idade trabalhar?
- Ouvi falar, mas nunca tinha conhecido uma de perto.
- Pois agora está conhecendo.
- É, você é muito engraçada mesmo.
- Mais engraçada do que eu, só meus dois irmãos, eles contam cada piada que a senhora ia morrer de rir.
- É, mas eu não estou para muita graça hoje não.
- Então, até logo.
- Tchau.
Eu segui para a casa e achei legal conversar com aquela moça. Contei para a minha mãe tudo que a gente conversou, inclusive dos mil reais.
- Mil reais minha filha é 10 vezes mais o que a sua mãe ganha.
- Poxa! Então ela assaltou um banco?
- Eu não sei, mas na capital as pessoas ganham bem, não é como aqui no interior. Ouvi dizer que tem gente que ganha até mais de mil reais.
- É, meu Deus, será que um dia eu vou ganhar mil reais?
- Tomará que sim.
- Mãe, se eu ganhar mil reais eu compro uma casa nova para a senhora, um carro de lanche e uma feira inteirinha para o papai. Mamãe riu e me abraçou.
- Mil reais é muito, mas não dá para comprar tudo isso minha filha.
- Como não dá, não é 10 vezes mais do que a senhora ganha?
- É, mas eu ganho também muito pouco. O Salário mínimo passa de duzentos e eu não chego a receber nem a metade.
- Mas um dia a senhora vai ganhar um salário mínimo, eu vou orar para isso acontecer.
- Meu anjo. Disse minha mãe, beijando minha testa. Eu fui dormir.

No dia seguinte, a mesma rotina. Acordar às 5 horas, preparar o café, comprar o pão e sair para a casa de Dona Rosinha. Naquele dia resolvir cortar o caminho pela praça, queria saber se aquela moça ainda estava lá e para a minha surpresa, ela estava lá mesmo, encolhida no banco. Eu fui falar com ela.
- Oi moça, a senhora está dormindo?
- Oi, estava, quer dizer, cochilei, é difícil dormir nesse banco duro.
- E a senhora foi lá na Dona Mundica?
- Fui, fui sim, e a comida dela é muito boa, obrigada.
- Eu não falei? E o que a senhora vai fazer agora?
- Não sei, ontem tentei pegar uma carona para Cachoeira, mas não consegui, tentei ligar a cobrar para Roberto e não completou a ligação.
- É, os telefones daqui vivem com problema, também ninguém tem para onde ligar, por isso os donos não consertam.
- Pois é, agora vou ver se consigo que alguém me ajude a pegar um ônibus para ir até Cachoeira.
- Boa sorte moça, agora preciso ir trabalhar que já estou atrasada.
- Boa sorte para você também Mariazinha. Como pode alguém explorar uma criança dessa?
Já passava das 6 horas quando cheguei na casa de Dona Rosinha. Ela estava no portão me esperando.
- Isso é hora de chegar menina?
- Desculpe Dona Rosinha, mas tive que resolver um problema muito sério.
- E desde quando criança resolve problema sério?
- Desde quando ela conhece alguém que precisa e eu conheci.
- Está bem, deixe de conversa fiada que tem muita coisa para você fazer lá dentro, venha!
Eu entrei e fiquei muito triste com o tratamento que Dona Rosinha me deu. Eu nunca havia chegado atrasada, foi só essa vez e ela ficou muito braba. Nesse dia ela me castigou mesmo, me fez passar até o pano de chão, já passava das sete e eu ainda estava em sua casa.
- Dona Rosinha, estou muito cansada, dá para eu ir embora agora, amanhã termino de passar o resto da roupa.
- Nada disso, você só vai sair quando terminar tudo. Eu abaixei a cabeça e voltei ao trabalho. Depois algum tempo escutei uns gritos na sala e fui ver o que era. Era a minha mãe brigando com Dona Rosinha.
- Você não pode falar assim comigo!
- E a senhora não pode manter presa a minha filha até essas horas da noite na sua casa.
- Mas e você sabe que horas ela chegou aqui?
- Isso não interessa, eu só sei que passa das nove e ela ainda está trabalhando como uma escrava.
- Que escrava? Eu a trato como uma filha, você sabe muito bem disso.
- Ah! Sei, sei sim, igualzinho a Adriana. Então me diga a onde a Adriana está agora?
- Está dormindo, ela acorda cedo amanhã para ir a escola.
- Pois é, e a minha menina vai ver ainda nem jantou. Isso é porque a senhora trata muito bem ela. Pois eu vou levar ela agora daqui e para essa casa ela não volta mais.
- Mãe!? Falei espantada com sua decisão.
- Venha Mariazinha, vamos embora daqui.
- Então vá, leve ela, quero ver se vai encontrar alguém que trate melhor ela do que eu.
- Isso nos vamos ver Dona Rosinha.
- Mas mãe! – continuei.
- Venha, eu já disse. Minha mãe me puxou pelo braço até em casa.

Uma nova vida

Em casa ela chorou por mais de 30 minutos sem parar, nem água com açúcar ela queria.
- Pára mãe, já chega, tá bom.
- É muito triste a gente ver a filha da gente sendo explorada por quem tem um pouquinho a mais do que nós.
- Deixa mãe, eu arrumo outro emprego logo, logo. A dona Cocota me disse que me paga até R$ 30 por mês para eu ficar no bar e ainda me deixa estudar.
- É? Quem te falou isso?
- Eu sei, a ouvi pedir para Dona Ricosinha arrumar uma menina para ela. Ricosinha até viajou para a Vila do Pinheiro para buscar menina. É só eu ir lá e dizer que eu aceito a mesma proposta.
- Ah! Minha filha como eu queria ter dinheiro para não precisar fazer você trabalhar.
- Deixa, eu gosto. Eu vou jantar e depois vou lá com Dona Ricosinha.
- Eu vou com você.

- Oi Dona Ricosinha. Eu tirei Mariazinha das mãos de Rosinha. Ela já explorou demais a menina. Ontem ela fez Mariazinha ficar até as 9 horas passando roupa sem comer, eu não agüentei e fui lá, esculachei e tirei ela dela, mas a senhora sabe que somos pobres e não podemos nos dar o luxo de ficar com ela em casa. A senhora quer uma menina para lhe ajudar no bar?
- Quero sim, até mandei buscar lá na Vila Pinheiro, tá cheio de menina querendo vim pra cá.
- E a Mariazinha não serve?
- Não sei não Dona Joana, Mariazinha vive falando por aqui que quer estudar e isso não vai dar certo.
- Mas Dona Ricosinha ouvi a senhora dizer que pagava R$ 30 por mês e ainda deixava a menina estudar, foi por isso que pedi para a mamãe vir aqui.
- Eu falei isso para a menina vir para cá, mas eu não quero que estude não. De manhã a gente prepara o bar para a noite e a noite a gente trabalha, então que tempo ela terá de estudar? Não vai dar.
- Poxa, então desculpe.

Depois daquele dia fiquei preocupada com a nossa situação.Não podia ficar sem trabalho, mas também queria aprender juntar as letras. Eu já tinha 10 anos e mal sabia soletrar. Precisei tomar uma decisão: trabalhar por conta própria. Falei com a mamãe e ela me apoiou. Como sabia fazer doces, comecei vendendo pirulito de limão na beira da estrada. Era fácil. Deixava o açúcar no fogo derreter e pingava limão e depois colocava no papel e enfiava um palito, ficava uma gostosura. Pegava carona cedo com o seu João que tinha caminhão e ia para estrada vender para as pessoas de carro que passam para outra cidade. A minha vida mudou. No primeiro mês ganhei mais de R$ 30 e no segundo quase fiz R$ 50, mas do que o dobro que eu ganhava na Dona Rosinha, só que eu não tinha tempo de estudar,pois ficava o dia todo na rua vendendo e quando chegava a noite estava cansada. Mas um dia a minha vida mudou. Conheci um senhor muito bom, o seu Hélio e ele me comprou todos os pirulitos num dia. Uma semana depois ele voltou e disse que me dava R$ 30 reais para eu brincar com ele. Não achei nada demais e aceitei. Eu não tinha muita prática para brincar porque nunca tive tempo para isso, mas por R$ 30 eu brincava. Então ele me levou para o caminhão dele e disse que a nossa brincadeira seria de mostrar o que tínhamos um para o outro. Eu só tinha os pirulitos e um pregador de cabelo, além da minha sandália e minha roupa. Eu estava até me divertindo, mas achei estranho ele pedi para eu tirar a minha blusa. Mas como estava em jogo os R$ 30 não hesitei, também não tinha peito para mostrar. Quando ele viu que eu não tinha peito ficou muito feliz e disse que me dava R$ 50 para eu ficar nua. Eu fiquei. Ele mandou eu fechar os olhos e não abrir por nada desse mundo e me preveniu que não era para eu me assustar com alguns ruídos que ele ia fazer, pois tudo fazia parte da brincadeira. Eu topei, mas fiquei com medo por um momento. A brincadeira não durou muito, ele me deu o dinheiro prometido e disse que no dia seguinte íamos brincar de novo, só que de forma diferente e que eu ia gostar muito. Fiquei feliz e voltei para casa cantando, só não contei para a mamãe que estava brincando no trabalho, ela poderia não gostar.














SHIRLEY CASTILHO
Enviado por SHIRLEY CASTILHO em 07/10/2007
Reeditado em 13/09/2008
Código do texto: T684581