Eusébio
 
Com oitenta e tantos e em plena pandemia de um vírus nascido no Oriente, Eusébio teve sua carteira de motorista vencida. Renovar era preciso, pois ainda não abandonara o hábito da direção.
 
No dia agendado para o exame de aptidão física, necessário para a renovação do documento, ele tirou a impecável Variant 1970, azul, da garagem e, supostamente protegido com a máscara de tecido duplo cobrindo a boca e o nariz, atravessou a cidade com destino à clínica de avaliação credenciada. Como sempre fazia, diante de um compromisso importante, saiu com folga para não correr risco de atraso.
 
Na clínica, apresentou-se e foi logo chamado para o reconhecimento através das impressões digitais já cadastradas no sistema do órgão de trânsito. Foi experimentando dedo por dedo, sem sucesso, uma, duas, três vezes. Quando a moça estava prestes a desistir e partir para a certificação manual, eis que sua CNH aparece no vídeo.
 
- Sou eu ali! – exclamou Eusébio com discreta euforia.
 
- Muito bem, deu certo, não preciso certificar – disse a mocinha – o senhor pode sentar-se na cadeira do corredor, que a doutora já vai chamá-lo.
 
Exame de força, tranquilo. As mãos continuavam firmes e fortes. No de vista, nem tanto. Aproximava os olhos do aparelho, falava uma letra e as lentes dos óculos embaçavam pela condensação do ar quente da expiração que escapava pela parte superior da máscara de proteção. Afastava o rosto, tirava dos óculos, balançava para desembaçar e voltava. Mais uma letra e nova operação de desembaçamento. Uma por uma foi vencendo as etapas. Supôs ter errado umas duas ou três.
 
No reconhecimento das cores e também na distinção da letra grande, apesar dos olhos ofuscados por uma luz forte, emitida pelo aparelho, passou com louvor.
 
A médica, enquanto cumpria a parte burocrática, passando os dados e o resultado para o computador, perguntou:
 
- O senhor ouve bem?
 
- Sim.
 
- Tem pressão alta e diabete?
 
- Hem?
 
- Tem pressão alta e diabete? – Ela voltou a perguntar, elevando ligeiramente a voz.
 
- Sim, sinto muita falta da tia Bete – respondeu Eusébio. A senhora a conhecia? Não a estou reconhecendo, talvez seja a máscara. Ela faleceu. Já faz cinco anos sou viúvo. Você é filha de quem?
 
A médica, considerando o conjunto dos exames, estava a fim de reprová-lo. Contudo, sabia que muita gente saia-se bem na avaliação, mas revelava-se irresponsável no trânsito. Assim, mudou de ideia e encaminhou-se à porta para se despedir do velhinho, depois de um sinal de positivo com o polegar.
 
Eusébio saiu feliz e senhor de si, por saber que poderia continuar dirigindo legalmente. Postou-se ao volante da Variant, livrou-se da incômoda máscara e a largou no banco do carona. Ligou o som, onde a Billie Holiday o esperava cantando Blue Moon. Deu partida, aumentou o volume e arrancou para casa, cantarolando com ela.
 
Contente à beça, distraiu-se  e não observou as luzes de advertência nem ouviu o sinal sonoro na passagem de nível. A colisão foi inevitável.
 
Os bombeiros precisaram cortar as ferragens, para que os socorristas o resgatassem dos escombros do veículo. Ajeitado na maca com cuidado, ninguém conseguia acreditar que ele ainda estivesse vivo, embora inconsciente, e aparentemente sem ferimentos graves. No momento, era possível identificar uma única escoriação na testa.
 
No hospital, não foi constatado nenhum osso quebrado, nenhuma perfuração nem hemorragia, mas continuava desacordado. Foi então encaminhado para a UTI.
 
Dez dias depois, Eusébio vai acordando lentamente. Percebe o local estranho, mas logo se recorda de tudo. Como se a cena tivesse acontecido há minutos, ele identifica a frente da locomotiva do trem cargueiro aproximando-se pela direita. Instintivamente, pisa fundo no acelerador. Tarde demais. Ouviu e sentiu o forte impacto na lateral do carro e não viu mais nada.
 
A enfermeira aproxima-se do leito e ao vê-lo desperto, sorri.
 
- Bom dia, seu Eusébio. Que bom que acordou do soninho.
 
Eusébio tenta falar, mas a voz destreinada pelos dias de inatividade não lhe sai na primeira investida. Tenta de novo e balbucia, embora com a impressão e o esforço de quem grita:
 
- A Variant estragou muito?
 
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N. do A. – Na ilustração, Retrato de Um Homem Velho de Rembrandt (Holanda, 1606-1669).
João Carlos Hey
Enviado por João Carlos Hey em 08/07/2020
Reeditado em 12/07/2020
Código do texto: T6999964
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