Obsessão

São três da madrugada e ainda não consegui dormir. Poxa, a festa no apartamento ao lado é uma broca me perfurando os ouvidos! Estou exagerando, mas meus ouvidos não. Parece que todo o meu corpo foi, e continua sendo, triturado pela música ruim e mais cheia de clichêzinhos de amor, relação, amizade colorida e “pegação” que filme hollywoodiano, feito para encher bolso de espertinhos metidos a artistas e exploradores de terninho. Não consigo contar qual foi a última vez em que dormi mal. Normalmente durmo como uma pedra em coma. Essa noite eu tive azar, mas fazer o quê? Não. Esqueçam a maldita festa; sendo mesmo sincero, a causa disso tudo é Ana. Foi tudo por causa de Ana. Droga. Só de pensar nesse nome, todo meu corpo é invadido por uma sensação estranha e calorosa, mas possessiva e viciante. Parece uma obsessão, por que só tem espaço para ela e ela e mais ela (Droga, pareço uma criancinha com os olhos cheios de água e os beiços contraídos e os pés tentando ensinar a gravidade como fazer o trabalho dela). Não adianta fazer piada. Também não adianta conversar comigo mesmo, isso não ajuda nada... Ou talvez seja eu que não escute bem a mim mesmo. Aí eu começo a falar difícil esquecendo completamente o assunto principal...

Passei alguns minutos ruminando sobre outras coisas. Só agora tenho disposição para dar prioridade a esse assunto. O que eu realmente queria falar, ou pensar, é que desde que vi Ana esta manhã, não consigo me manter equilibrado. Na verdade, nem sei se algum dia fui equilibrado antes ou depois de conhecer Ana.

Realmente, só consigo pensar nela. Se quer mesmo saber, tudo aconteceu muito causalmente e de maneira bem banal, mas começou quando nos vimos, enquanto eu estava na faculdade, indo para o meu bloco, para mais daquelas aulas irritantes e cansativas. Logo que a vi, parei e perguntei como estava. Desfrutei a surpresa, mesmo que não fosse tão grande assim, pois eu estava esperando por aquele momento a muito tempo. Faz pouco que eu comecei a faculdade e, por sorte, é no mesmo campus em que ela estuda. Ganhei o ano. Pena que o tal “ano” é o mesmo em que ela se forma. Trocamos algumas palavras. Fiquei sabendo que ela ainda teria muitas aulas naquele dia e tal (e mais algumas frivolidades), enquanto eu ficaria só até o meio dia. A frieza presente na forma como conversava comigo me cortou, mas não tão profundamente assim para que eu não pudesse tomar – nem tanta – coragem (já que ela foi minha amiga no ensino médio e, por isso, pensei ainda termos esse pequeno laço) para perguntar qual era seu número para adicionar aos meus contatos e conversarmos depois. Claro, ela entendeu o que eu queria. Minha felicidade quase era completa enquanto aqueles lábios pequenos, mas acolhedores disseram pouco a pouco os dígitos do número. Droga. Só consigo pensar no rosto dela! Nos olhos, amigáveis, mas cansados. Nos óculos, frios, mas sensatos, Nos cabelos, cacheados, mas bem penteados. Até escrevi um poema mental!!! Aaaaaaaaaaaaah!!!!!!!!! Isso parece que vai me consumir, me tirar toda a paz que eu pensei que tivesse algum dia!!... Tentei chorar. Não consegui, nunca mais chorei desde... Uma certa coisa aconteceu, mas isso não faz parte disso. Mas não sou frio, isso é obvio. Tenho alma. Eu ia dizendo que... Bem, depois que cheguei em casa, logo liguei meu celular e consultei a folha onde tinha escrito os números. Digitei saboreando cada dígito, como se dela tivessem saído da boca direto para minha. Então... E então nada. O número era de uma mulher qualquer, que nem mesmo sabia quem era Ana. A cólera era tanta que quase atirei o celular na parede, que nem um ator de novela tendo chilique – a raiva me domina, às vezes, e eu odeio isso. Desliguei o celular. Como falei, já nos conhecíamos a um bom tempo, mas nunca notei que ela me desprezasse tanto.

É isso, nesse momento, depois de me levantar e, quase, ter pego o celular para checar de novo, se tinha digitado os números certos – como fiz boa parte da tarde, leia-se: quase a tarde inteira –, fui como estava para fora do quarto. Abri a porta da sala. Deixei algumas luzes acesas. Então fechei minha porta e bati na porta vermelha e novinha do vizinho farrista, que eu só conhecia por ver nas reuniões de condomínio. Uma pessoa qualquer atendeu a porta. Fui logo passando por essa pessoa, sem a menor educação ou graça, e agora estou pulando, girando a cabeça e dançando ao som ruidoso e medonho das malditas músicas de que falei. Sei lá o que me deu. Parece que fui possuído por alguma coisa. Não consigo chorar, mas consigo fazer muita besteira por aí. Me arrependo de não ter olhado para as costas de Ana quando ela saiu de perto de mim, indo para o rumo contrário ao que eu estava.

Andoru
Enviado por Andoru em 09/07/2020
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