Poderia ser qualquer uma. Qualquer pessoa pode ser qualquer um. Caminhar nas ruas das grandes cidades nos dá essa invisibilidade. Desde que não seja famoso ou que tenha feito algo muito errado nos colocamos nessa condição. Alguns mais, outros menos. Invisibilidade é muito parecido com indiferença. Por vezes, as duas andam lado a lado. Alguém pode ser invisível, sendo visto por todos. Alguém está no chão pedindo e seguimos. Indiferente a indiferença. Quando estava na faculdade de ciências sociais via algo curioso: um senhor de idade (poderia ter 50 anos, mas sua aparência e sua condição física lhe davam aparência de muito mais), vestia-se com roupas sujas e bastante rasgadas. Dividia o espaço na marquise com gatos e cachorros que se abrigavam do sol e da chuva. O velho parecia sofrer de um problema de saúde, conhecido popularmente por elefantíase. As pernas cobertas por gases manchadas por líquidos que saiam de sua perna. Lembrava alguém com lepra. Seu rosto ossudo, olhar sem brilho me causava incômodo. Os intelectuais não o via. Os estudantes, quase todos revolucionários, também, não o via. Os conservadores, olhavam para cima. Havia um grupo de religiosas que estudavam filosofia, que entravam e saiam todas juntas no prédio da faculdades. Passavam por este mesmo caminho e, também, não o via. Um pouco mais afastado, dois cachorros magros abanavam o rabo, sempre que algum acadêmico lhe direcionava o olhar piedoso. Os gatos circulavam discretamente, mas também tinham seu espaço. Perto de uma das colunas, pequenas bacias. As menores sempre cheias de leite, a outra com ração. Sempre abastecidas por defensoras e defensores dos animais. Mocinhas bonitinhas com seus smartphones de última geração tiravam fotos. “Que lindinho!” Poucos olhavam o velho. Chico, o livreiro, sempre que podia lhe pagava um cachorro-quente. A própria mulher que vendia cachorro quente, às vezes dava pedaços de pão, sobras que não podiam ser vendidos. Restos do dia anterior. Lembrei deste fato, porque dentro dos portões o discurso era a redenção, a revolução que salvaria os pobres do capitalismo selvagem. Ninguém notava aquele miserável até o dia que amanheceu morto na entrada principal do prédio. O cachorros e os gatos foram os primeiros a ficarem ao lado do corpo. Um dos cachorros, com o rabo entre as pernas parecia assustado, outro observava com olhar distante. Por muitos anos vi o contrário: o velho voltado para os animais. Imaginava que pudesse ter inveja daqueles animais tão humanos em piedade. Naquele momento atribuíam um pouco da atenção, de quem em algum momento padecera e, no último gesto, de fato sentiam que algo para além do que todos nós não podemos controlar. Havia acontecido nas primeiras horas. Tudo estaria um pouco mais lento, até que o carro do instituto de medicina legal chegasse, com peritos e policiais para ver o corpo. O Velho ficou dobrado, com as pernas entre os braços, como se estivesse tomado de frio e fome. Poderia ser um gesto de dor, de quem se protege das dores da alma. Ouvi – não lembro onde – que não nos acostumamos com a fome, mas convivemos. Por vezes, a suportamos como um parente maldito, no qual nem sempre é possível nos distanciar. Um corpo que não estava estirado, mas encolhido. Imaginei poderia ser dor, frio, ou quem sabe mesmo solidão na própria condição humana que aos poucos esvai-se. Um homem invisível que no seu último gesto escondeu o rosto. Deitado na posição de feto, poderia ser o último pedido. Ausência de calor. Suponho que tivesse sido dor mesmo. Um dos cachorros uivou como sentisse sua falta. O segurança bateu o pé para espantar o cachorro. Uma das mocinhas que pretendia entrar olhou com indignação tamanha maldade com o melhor amigo do homem. Outra comprometida com a ciência assume seu espírito crítico: - Por que não resolvem isso logo? Esse velho tem tanto lugar pra morrer e vem pra cá? O que esses seguranças ficam fazendo? De fato, o que seguranças fazem? Aproximei para ver quem falava. Vestia-se como se estivesse a caminhar numa praça. Pessoas descoladas e legais devem desprender-se dos luxos do capitalismo, mesmo que chave do seu carro seja de um mercedes-benz. Que importância tem isso? Me aproximei. Parei do lado para ver se algo seria dito. Chico, o livreiro, parecia indignado. Um dos rapazes que lavava carros e distribuía maconha para os estudantes do prédio parecia marcar a moça. Creio que ela tenha me somado ao grupo dos indignados. Uma terceira pessoa que cuidava de lavar os carros e servir de ajudante aos traficantes do campus recolhia a vasilha de comida dos animais. Alguns minutos depois a polícia chegou. Continuamos no mesmo lugar. Esperava que jovem com espírito crítico, iluminada pelo feminismo, manifestasse sua indignação, ou pelo menos seu medo diante de marginais indignados. Ela, também, ficou lá, parada. Aos poucos cones foram espalhados ao redor, seguido de uma fita amarela. As fotografias não foram suficientes para superar toda indiferença e invisibilidade. Muitas fotos, daquelas que não interessa a ninguém. No caso dele, nem aos jornais sensacionalistas. Indiferentes, invisíveis. Por isso, que todo gesto de alegria deve ser, igualmente, com alegria. Alguém pára e faz você sorrir, porque este é seu trabalho. Na maioria das vezes não é assim. Nem nas lojas as pessoas estão dispostas a fingirem que você é importante, pelo menos naqueles raros minutos que temos alguma utilidade. Não quero afirmar que somos inúteis, mas o consumo nos enriquece o ego. Funciona mais ou menos como uma droga leva ao nosso cérebro uma descarga de prazer. Alguns chegam a ficar viciados. Essa presença no qual estamos, mas não somos notados só pode ser resolvido quando encontramos o outros, que lhe dê minimamente a sensação de não estarmos tão sós. Me vêm logo a ideia das igrejas. Durante um bom tempo sempre imaginei as pessoas que frequentam igrejas menos solitárias. Hoje não tenho certeza. O plano de metas lhes é logo estabelecido. Há uma similitude. Vejo o outro em mim e como num reflexo, o outro se espelha em mim. Logo, é preciso que tudo esteja no seu lugar. Tudo tão igual, no qual não resta outra saída ao diferente do que ser diferente. Terminamos caindo na mesma multidão de iguais. O desigual some nessa multidão e, daí ganha a outra condição: invisível, mas juramos sermos visíveis. Pensei todas essas coisas depois de um dia que poderia ser como qualquer outro. De certa forma, sim, foi como qualquer outro. Quarta-feira, com típica cara de quarta-feira. Alguém poderia me dizer como é a cara da quarta-feira? Poderia ser aquele único momento. De alguém que está em plena tarde andando pelo centro da cidade sem saber para onde está indo. Caminha de um lado para outro. Vê algumas lojas. Lembrei que precisava comprar uma camisa de corrida. Por mais preguiçoso que fosse, nutro o desejo de ser uma atleta que corre. Dizem que não importa ganhar. Será que vale ao menos uma medalha de participação. Sempre quis ganhar algo. Alguma coisa que pudesse colocar na parede.
Jorge Alexandro Barbosa
Enviado por Jorge Alexandro Barbosa em 22/07/2020
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