Homicídio nada culposo

A névoa fria de outono ainda cobria aquela encosta de morro, onde de longe só se viam as luzes das ruas sinuosas que riscavam os becos e vielas daquela comunidade. Num destes inúmeros barracos jazia exausto da lida diária Jeremias, um mulato claro bem franzino, o relógio marcava 5:30 quando “Jerê” – como era conhecido na favela – foi acordado com a gritaria que vinha do barraco colado ao seu; pela milésima vez Chiquinho, o bêbado mais conhecido do local, chegava em casa de porre e Conceição sua “patroa”, aos berros, jogava tudo – ou quase nada – que havia no barraco no pobre moribundo.

Com os olhos ardendo e vermelhos de sono não restou outra saída para Jeremias a não ser rolar na cama até o despertador sacudi-lo às 6:00 em ponto, e num rápido lampejo de uma cochilada, como que por encanto, o relógio saltou para a famigerada hora, Jerê deu um salto e descontou sua ira no irritante aparelho, socando o despertador como se fosse a cara de Chiquinho. Há muito já vinha amadurecendo a idéia de pôr um fim naquela sina, só mesmo Dona Alcina – sua mãe – conseguia acalmar sua revolta; uma hora era Chiquinho bêbado, outra vez era a violência no morro que o impedia até mesmo de voltar para casa e descansar seu esqueleto que já quase aparecia de tão magro, mas o pior para ele eram as humilhações na firma em que prestava serviço como free-lancer.

Jeremias se considerava o melhor moto-boy daquela espelunca, mas mesmo assim sempre sobrava para ele, um engravatado filho-da-mãe que se dizia seu chefe e esnobava a todos fazia Jeremias de capacho concedendo a ele os piores serviços – a implicância era de graça desde que Jerê pôs os pés naquela firma – e ele havia jurado para si mesmo que um dia dava cabo do almofadinha, mesmo precisando demais do emprego para ajudar Dona Alcina que havia sido aposentada por invalidez.

E foi com essa decisão na cabeça que Jeremias engoliu o café com pão que Dona Alcina havia preparado com todo carinho, conseguiu esconder uma velha arma e sua decisão atrás de um sorriso pálido amarelado. Estava decidido a dar um fim a tudo aquilo. Farto das promessas de um futuro que não se avizinhava nunca pegou sua moto e desceu o morro cantando pneu pelos becos que tanto conhecia. Naquele silêncio dentro do capacete seus pensamentos pareciam aprisionados tomando por completo sua mente e cegando seu último resquício de sanidade.

Jeremias acelerou tudo que podia, aquele era o dia, seria matar ou morrer, pouco importava. Cruzava as esquinas e os semáforos como um louco suicida, ainda no seu bairro já havia furado uma meia dúzia de sinais causando um reboliço por onde passava, seguia acelerando e acelerando em direção à firma, frear nem passava pela sua cabeça e riscava por entre carros a uma velocidade estonteante. Talvez no seu inconsciente houvesse uma vontade surda de que alguma roda de caminhão o parasse antes que consumasse a tragédia, mas Deus parecia o estar usando como instrumento de vingança e foi abrindo caminho. Ele enfim pressentiu que conseguiria seu intento ao passar pela esquina mais perigosa do trajeto, percebeu um caminhão cruzando seu caminho e não teve dúvida; acelerou tudo que podia. Ao ver aquele louco ensandecido o pobre motorista só teve tempo para cravar o pé no breque, o chiado e o cheiro da borracha fritando no asfalto só não foram piores do que o barulho seco de batida que se seguiu. Quando abriu os olhos Jeremias ainda estava inteiro e em cima da moto, mas havia deixado para trás um rastro de destruição e caos.

Quando finalmente Jeremias parou na porta da firma, todos já estavam no pátio a esperar por suas entregas, seus olhos estavam fixos e arregalados, tanto que não reparou em ninguém, sacou a arma que trazia e foi em direção à expedição onde trabalhava o almofadinha, meteu o pé na porta e foi gritando: “Cadê aquele filho-da-puta do Jorge?” Por alguns segundos as pessoas lá dentro silenciaram e ficaram estáticas, foi então que Jeremias percebeu o olhar triste e choroso de Dona Maria – uma velha funcionária – que baixando a cabeça, murmurou: “Jeremias, o Jorge morreu hoje de manhã num acidente de carro...”

Foi então que a cena da freada do caminhão voltou como um raio à sua mente e Jeremias saiu correndo pela porta. Os que presenciaram a cena contam que ele gargalhava como se estivesse numa roda de anedotas. Dizem que soltou a arma, arrancou com a moto, sumiu na fumaça... E nunca mais foi visto em lugar nenhum!

marcelo ferraz
Enviado por marcelo ferraz em 19/10/2007
Código do texto: T701545
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