... benditas lágrimas que irriga o jardim das convicções ...

15 horas. Tinha a sensação que ficará dois passos mais próximo do sol. Ainda me recuperava da doença que me afastou das minhas atividades por dois meses. Janeiro não é fácil de suportar. Cheguei muito antes da hora marcada para análise. Pretendia ver o preço de alguns produtos que precisava em casa. Eletrônicos, quem sabe uma camiseta para corrida. Sou lento para comprar algo. Entrei numa dessas lanchonetes chinesas. Sempre os mesmos salgados, um vasto balcão, no restante do salão mesas. Foram eles que trouxeram para cidade a ideia de pagar antes de consumir o produto – pelo menos nas lanchonetes. O que se vende mais é um suco, que mais parece água suja. Dá pra tomar porque é gelado, embora, tenha melhorado bastante nos últimos anos. Essas redes de lanchonete cresceram muito, quase não se vê chineses, a não ser suas concepções de mundo. Vi alguns funcionários da lanchonete comendo uma marmitinha e, daí pensei: “não comem o que há no local ou porque é ruim ou seus padrões não deixam?” Poderia ser as duas coisas. Em geral são trabalhadores sem grandes qualificação profissional. Ganham menos de um salário mínimo. No caixa, quem despachava era uma mulher grávida. Jovem, que devia ter uns vinte cinco anos no máximo. Vestia-se com sua tradicional farda. Calça cinza, camiseta azul com mangas na cor vermelha, na altura do peito caracteres em mandarim. Alguns com bonés nas cores da camiseta. Essa jovem deveria está com seus meses de gravidez. Chamava atenção seu olhar abatido pelo cansaço do dia.
- Oi! Quero pastel e suco
- Oito reais
A vendedora se aproximou. Tirou do bolso um pedaço de pano, que mais parecia pano de chão, passou sobre o balcão como se estivesse limpando. Senti um odor estranho depois do segundo movimento. Havia algumas moscas voando no local. Desci do banco para vê se no local dos pastéis, também, não teria moscas ou algo ainda mais insuportável.
Vai querer o quê? - voltou a questionar como se estivesse pedindo algo.
Me dê um refrigerante.
Não vai comer nada?
Quando ela trouxe o refrigerante senti que o problema não era o pano, mas a própria mulher. Sua aparência era de cansada. Apesar de sua gravidez aparente, não saberia precisar o tempo de sua gestação, mais fácil foi perceber que trabalhava no mesmo ritmo dos demais. Pior! Atendendo clientes.
Paguei o refrigerante. vi que a mulher ficou desconfiada. Olhe-a mais uma vez. Queria me certificar que não estaria sendo injusto ao vê-la com a farda suja, ou ainda, perceber que isto poderia ser um traço de personalidade, apesar de não poder pensar isso, por razões óbvias: não a conhecia. Sentei na mesa mais distante observando a jovem, que no momento de tranquilidade aproveitou para descansar. Fiz a mesma coisa. Depois dos primeiros goles revigorantes percebi que não me sentia bem fisicamente. Os últimos dois meses foram os piores. Por mais que tentasse esconder não me sentia bem. Talvez, por isso, tenha me impressionado ver esta jovem mãe com aparência que não era das melhores. Não falo de doença, mas de alegria, como alguém que está para receber uma grande novidade, cercada de grandes expectativas. Seu olhar era opaco. Dias antes minha mãe tentava me passar sua herança de família:
- Essa tosse. Essa tosse. Você está com tuberculose. Meu pai teve, minha mãe teve, eu tive, meus irmãos teve, todo mundo da família.
Olhei estupefato. Sai discretamente. Recusei essa maldita transferência sem alardes. Percebi que algo tinha mudado. É preciso sair do círculo vicioso do erro, dos erros mais primitivos, no qual nem sempre escolhemos. Essa tentativa de me classificar à um passado que não me pertence deu força interior, para sair andando, sedento por mudanças. Ainda estou fraco, mas consegui sair.
Está sentado vendo essas pessoas sem nenhuma expressão, observando esta jovem grávida, trabalhando por alguns centavos. Tudo isso afugenta qualquer noção de justiça para debaixo do tapete. Enfim! Não quero ser este doente que todos desejam. Fico pensando porque fazem de mim esta imagem? Talvez, porque não tenha sido o viado que meu pai esperava, nem escolhi ser a ovelhinha obediente que minha mãe sempre quis que fosse. Talvez porque ignorei meu avô paterno - Ele era outro que queria um netinho viado, aliás, como homem público de uma pequena cidade, fez questão de espalhar à todos, embora seu objetivo não fosse me atingir, mas envergonhar meu pai. De fato, O velho Brás, “O melhor prefeito do cidade”, tido cegamente pelo masoquistas de seus filhos, conseguiu. Não é fácil romper com essa merda toda.
Observava pessoas que engoliam rápido. Na mesa da frente uma mulher e seu filho. Daria uns cinquenta anos para mãe, mas devia ter no máximo uns trinta e cinco. Seu filho comia despreocupado. Lembrei do meu filho. Fui tomado por um sentimento de saudade e distância que tirou minha concentração. Não existia motivos para isso. Sabia onde se encontrava. Ao lado de sua mãe, em companhia de outras crianças. Talvez a saudade não fosse propriamente dele, mas de alguma coisa do meu passado. Quando vi aquela criança na minha frente, acompanhada da mãe, imaginei que nunca poderia ter vivido essa experiência, mas muitas outras. Encontrava-se sentado sozinho à mesa de uma lanchonete suja. Abri minha latinha de coca-cola. Tomei de um gole só. Depois fui tomado pelo sentimento de fracasso. Andar pelo centro da cidade sempre me deu este sentimento.
Corpos jogados na calçada. Pessoas que rastejam, que fedem a própria miséria. Sempre gostei de fazer uma distinção entre pessoa que se dotaram de um nobre talento a ignorância, daqueles que preferiam os riscos de buscarem sempre a realidade dos fatos. Meu pai, por exemplo, esteve sempre na categoria dos primeiros. Ninguém melhor do que ele para definir as pessoas como sendo boas ou más, ou afirmar quem era honesto ou desonesto. Certa vez, ao falarmos sobre política e discordarmos, ele direcionou os dois braços com punhos fechado e disse:
“Tá vendo esses braços? Esses braços nunca viram e não verão algemas”
Essa foi a última conversa que tivemos. Me senti agredido por suas palavras, porque na verdade Ele estava me chamando de bandido. Sabendo que minhas ideias divergem das suas, disse, indiretamente, que merecia ser algemado como bandido. Lamentável que Ele não saiba (ou finja) que não é apenas bandidos que são algemados. Pessoas que pensam diferente do sistema, ou que lutaram por algo, também, já passaram por isso. Demorei um tempo para pensar nisso. Na hora, só queria sair de sua casa e não ver sua cara. O tempo não foi suficiente para nos aproximar. Nem nas ideias, nem sobre concepções de mundo. Hoje, ao contrário de ontem, sinto-me mais forte para sustentar o que acredito. Mesmo que minha vida represente o fracasso financeiro, não reclamo daquilo que não tenho e, me orgulho daquilo que acredito. Estamos distantes. Não tenho raiva. No passado? Chorei muito, muito mesmo, mas benditas lágrimas que irriga o jardim das convicções.
(Continua ...)
(Trecho do livro que estou escrevendo)
Jorge Alexandro Barbosa
Enviado por Jorge Alexandro Barbosa em 29/07/2020
Código do texto: T7020198
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